terça-feira, 17 de maio de 2016

Alice no País das Maravilhas.Capítulo 9 - A história da falsa tartaruga.


“Você não pode imaginar como eu estou feliz em vê-la novamente, minha queridinha”, disse a Duquesa, tocando afetuosamente o braço de Alice, passando a caminhar junto com ela.
Alice ficou feliz por encontrá-la de bom humor, e pensou consigo mesma que talvez fosse a pimenta que a deixava tão selvagem como quando as duas se conheceram na cozinha.
“Quando eu for uma Duquesa”, ela disse para si mesma (não em um tom muito esperançoso), “não vou usar pimenta em minha cozinha de jeito nenhum. Sopa cai muito bem sem isso talvez seja a pimenta que deixe as pessoas mal-humoradas”, ela continuou bem feliz de ter descoberto um novo tipo de regra, “e o vinagre as deixa azedas... e a camomila as deixa amargas... e. e as balas de cevada e este tipo de coisas é que deixam as crianças tão doces. Eu queria que as pessoas soubessem disso: então, eles não seriam tão sovinas com doces, sabe...”
 Ela quase se esqueceu da Duquesa nessa hora e levou um pequeno susto quando ouviu sua voz perto dos ouvidos.
“Você está pensando em alguma coisa, minha querida, e isso faz você esquecer-se de falar. Eu não posso lhe dizer agora qual é a moral disso, mas vou lembrar num instante.”
“Talvez não haja nenhuma”, Alice aventurou-se a observar.
“Ora, ora, criança!”, retrucou a Duquesa. “Tudo tem uma moral, se você encontrá-la.” E foi se apertando contra Alice enquanto falava.
Alice não gostou muito de estar tão perto dela, em primeiro lugar porque a Duquesa era muito feia, e em segundo lugar porque era do tamanho exato para apoiar o queixo sobre o ombro de Alice, e possuía um queixo muito pontudo. Entretanto, Alice não queria ser rude e por isso aguentou o quanto pôde.
“O jogo parece estar bem melhor agora”, disse para manter a conversa.
“Perfeito”, respondeu a Duquesa, “e a moral disso é... ‘Oh! é o amor, é o amor que faz o mundo girar!”
“Alguém disse”, Alice murmurou, “que ele gira quando cada um cuida dos seus próprios negócios.”
“Ah! Bem! Isto quer dizer quase a mesma coisa”, disse a Duquesa enfiando o queixo pontudo nos ombros de Alice, completando, “e a moral disso é... ‘Tome conta do sentido e os sons tomarão conta de si mesmos.”
“Como ela gosta de achar uma moral em tudo!”, Alice pensou consigo mesma.
“Aposto como você está pensando porque eu não coloco meu braço na sua cintura”, a Duquesa falou, depois de uma pausa. “A razão é: tenho dúvidas em relação ao humor do seu flamingo. Posso experimentar?”
“Ele pode bicar”, Alice cautelosamente replicou não se sentindo nem um pouco a fim de que ela tentasse.
“Bem verdade”, disse a Duquesa, “flamingos e a mostarda bicam. E a moral disso é... ‘Pássaros da mesma plumagem voam juntos’.”
“Só que a mostarda não é um pássaro”, Alice observou.
“Certo. Como sempre”, disse a Duquesa, “você tem uma maneira muito clara de colocar as coisas!”
“É um mineral, eu acho”, disse Alice.
“É claro que é”, disse a Duquesa, que parecia pronta para concordar com tudo que Alice dissesse. “Há uma grande máquina de mostarda perto daqui. E a moral disso é... ‘Quanto mais tenho para mim, menos sobra para os outros’.”
“Ah! já sei!”, exclamou Alice, que não tinha prestado atenção à última observação da Duquesa. “É um vegetal. Não parece com um, mas é.”
“Eu concordo com você”, disse a Duquesa, “e a moral disso é... ‘Seja o que você parece ser’... ou, se você prefere colocar isso de um jeito mais simples... ‘Nunca se imagine diferente do que deveria parecer para os outros o que você fosse ou poderia ter sido não seja diferente do que você tendo sido poderia ter parecido para eles ser diferente’.”
“Eu acho que poderia entender melhor”, disse Alice polidamente, “se eu tivesse isso por escrito: não consigo seguir com você falando.”
“Isso não é nada em comparação com o que eu poderia dizer se quisesse”, replicou a Duquesa num tom de prazer.
“Por favor, não se dê ao trabalho de dizer isso mais complicado que já disse”, falou Alice.
“Oh, não fale em dar trabalho”, disse a Duquesa. “Dou-lhe de presente tudo o que já falei até agora.”
“Um tipo de presente bem barato!”, pensou Alice. “Fico feliz que as pessoas não costumem dar presentes de aniversário como esses!”. Mas ela não se aventurou a dizer isso em voz alta.
“Pensando novamente?”, perguntou a Duquesa, com outro cutucão do seu queixo pontudo.
“Eu tenho o direito de pensar”, disse Alice asperamente começando a se sentir aborrecida.
“Tem tanto direito”, disse a Duquesa, “quanto os porcos têm de voar, e a mo...”
Mas nesse instante, para grande surpresa de Alice, a voz da Duquesa sumiu, bem no meio da sua palavra favorita, moral, e o braço que estava grudado no seu começou a tremer. Alice olhou para cima e lá estava a Rainha diante dela, com os braços cruzados, franzindo o cenho como uma tempestade de raios e trovões.
“Um belo dia, não é, Majestade?”, a Duquesa começou, com uma vozinha débil, frágil.
“Agora, eu vou lhe dar um aviso sincero”, gritou a Rainha, batendo os pés no chão enquanto falava, “ou você ou a sua cabeça devem sair daqui, e já! Faça sua escolha!”
A duquesa fez sua escolha e sumiu no mesmo instante.
“Vamos continuar com o jogo”, a Rainha disse para Alice, e a menina estava assustada demais para dizer qualquer coisa, por isso seguiu-a lentamente em direção ao campo de críquete.
Os outros convidados tiraram vantagem com a ausência da Rainha e estavam descansando na sombra: entretanto, tão logo a avistaram correram apressados para o jogo, pois a Rainha tinha reforçado que um minuto sequer de atraso iria lhes custar a vida.
Todo o tempo em que eles estiveram jogando a Rainha não parou nem um minuto de discutir com os jogadores e gritar “Cortem a cabeça dele!”, ou “Cortem a cabeça dela!”. Aqueles que eram sentenciados ficavam sob custódia dos soldados, que, é claro, tinham que deixar seus postos de arcos do jogo para isso, daí, lá pelo final da primeira meia-hora de jogo, já não havia mais arcos e todos os jogadores, com exceção do Rei, da Rainha e de Alice estavam presos e sob sentença de execução.
Então a Rainha abandonou o jogo, quase sem fôlego e perguntou para Alice: “Você já viu a Falsa Tartaruga?”
“Não”, respondeu Alice. “Eu nem mesmo sei quem é a Falsa Tartaruga.”
“É com o que se faz a Sopa de Falsa Tartaruga”, completou a Rainha.
“Nunca vi uma, nem mesmo ouvi falar”, disse Alice.
“Venha, então”, disse a Rainha, “e eu vou lhe contar a história dela.”
Como todos caminhavam juntos, Alice ouviu o Rei dizer em voz baixa para os condenados: “Vocês estão todos perdoados.”
“Bem, isso é uma boa coisa!”, Alice disse para si mesma, pois estava se sentindo muito triste com as execuções que a Rainha ordenara.
Logo eles chegaram junto a um Grifo, que jacarezava ao sol. (Se você não sabe o que é um Grifo, olhe a figura).


“Levante-se, preguiçoso!”, disse a Rainha. “E leve esta senhorita para ver a Falsa Tartaruga e ouvir sua história. Eu preciso voltar para verificar algumas execuções que ordenei”, e afastou-se, deixando Alice sozinha com o Grifo.
Alice não gostou muito do visual da criatura, mas ela pensou que no fim das contas estaria mais a salvo ficando com ele do que seguindo com a selvagem Rainha. Pelo menos era o que esperava.
O Grifo sentou-se e esfregou os olhos, olhando a Rainha até que ela sumisse de vista. Então começou a rir por entre os dentes.
“Qual é a graça?”, perguntou Alice.
“Ela”, disse o Grifo. “Tudo é fantasia dela. Eles nunca executam ninguém, sabe. Vamos!”
“Todo mundo diz ‘vamos’ por aqui”, pensou Alice, ao mesmo tempo em que começou a segui-lo lentamente. “Eu nunca fui tão mandada em toda minha vida antes, nunca!”
Eles ainda não tinham ido muito longe, quando avistaram a Falsa Tartaruga ao longe, sentada triste e solitária sobre a pequena saliência de uma pedra e, ao chegarem mais perto, Alice pôde ouvi-la suspirar como se seu coração estivesse partido. Alice sentiu uma grande pena dela.
“Porque ela está triste?”, perguntou ao Grifo. E o Grifo respondeu com quase as mesmas palavras que dissera em relação à Rainha: “É tudo fantasia dela, ela não tem pelo que entristecer, sabe. Vamos!”
Eles foram então na direção da Falsa Tartaruga, que olhou para eles com seus grandes olhos cheios de lágrimas, mas não disse nada.
“Esta jovem”, disse o Grifo, “quer saber sua história, quer sim.”
“Eu vou lhe contar”, disse a Tartaruga, com uma voz profunda, cavernosa. “Sentem-se os dois, e não digam nenhuma palavra até eu terminar.”
Então eles sentaram-se e ninguém falou nada por alguns minutos.
Alice pensou consigo mesma. “Eu não sei como ela pode terminar se nem mesmo começa.”
Mas esperou pacientemente.


“Uma vez”, disse a Falsa Tartaruga afinal, com um suspiro profundo. “Eu era uma Tartaruga de verdade!”
Estas palavras foram seguidas de um grande silêncio, quebrado apenas por uma ocasional exclamação “Hjckrrh!”, vindo do Grifo e os constantes e fortes soluços da Falsa Tartaruga. Alice já estava a ponto de levantar e dizer “Obrigada, Senhora, pela sua interessante história”, mas ela não podia deixar de pensar que deveria haver mais algo a ser dito e então ficou sentada e não disse nada.
“Quando nós éramos pequenos”, a Falsa Tartaruga continuou afinal, mais calmamente, embora ainda soluçando um pouquinho, íamos para a escola no mar. O professor era uma velha Tartaruga. Nós costumávamos chamá-la Tartenruga****.
“E por que chamá-la de Tartenruga se ela era uma Tartaruga?”, perguntou Alice.
“Nós a chamávamos assim porque tinha rugas”, a Falsa Tartaruga respondeu com irritação. “Você é mesmo muito tonta!”
“Você deveria envergonhar-se de fazer uma pergunta tão boba”, completou o Grifo, e então os dois sentaram-se e ficaram em silêncio olhando para a pobre Alice, que se sentiu a ponto de enfiar a cabeça no chão de vergonha. Finalmente o Grifo disse para a Falsa Tartaruga:
“Vai em frente, velha amiga! Não vamos ficar aqui o dia inteiro!”.
Ela então prosseguiu:
“Sim, nós íamos para a escola no mar... mas parece que você não acredita mesmo...”
“Eu não disse nada!”, interrompeu Alice.
“Disse sim!”, retrucou a Falsa Tartaruga.
“Segure sua língua”, completou o Grifo, antes que Alice pudesse retrucar. A Falsa Tartaruga continuou:
“Nós tivemos a melhor educação... na verdade, nós íamos à escola diariamente...”
“Eu também ia à escola todos os dias”, falou Alice, “você não tem porque ficar orgulhosa disso.”
“Com aulas extras?”, perguntou a Falsa Tartaruga um pouco ansiosa.
“Sim”, respondeu Alice, “nós aprendíamos Francês e música.”
“E lavagem?”, mais uma vez perguntou a Falsa Tartaruga.
“É claro que não”, disse Alice indignadamente.
“Ah! Então a sua escola não era realmente boa”, acrescentou a Falsa Tartaruga em um tom de grande alívio. “Agora, na nossa tinha, afinal, ‘Francês, música e lavagem’... extra.”
“Vocês não precisavam muito disso”, retomou Alice, “vivendo no meio do mar.”
“Eu não tinha recursos para pagá-los”, insistiu a Falsa Tartaruga com um suspiro. “Eu só frequentava os cursos regulares.”
“E quais eram?” indagou a menina.
“Enrolação e Contorção, é claro, para começar”, a Falsa Tartaruga replicou, “e depois os diferentes ramos da Aritmética: Ambição, Distração, Enfeiação e Derrisão.”
“Eu nunca ouvi falar em ‘Enfeiação’”, Alice atreveu-se a dizer. “O que é isso?”
O Grifo levantou as patas em sinal de surpresa. “Nunca ouviu falar em ‘Enfeiação’!”, exclamou, “Você sabe o que é embelezamento, acredito eu!”
“Sim”, respondeu Alice sem muita certeza, “significa... fazer... alguma coisa... mais bonita...”
“Bem, então”, o Grifo continuou, “se você não sabe o que é enfeiação, você é muito boba mesmo.”
Alice não teve coragem de perguntar mais nada sobre o assunto. Virou-se então para a Falsa Tartaruga e disse:
“O que mais você aprendeu?”
“Bem, havia Mistério”, e a Falsa Tartaruga começou a enumerar as matérias nas patas. “Mistério antigo e moderno, com Marografia: também Arrastamento... o professor de Arrastamento era um velho congro, que vinha uma vez por semana. Ele nos ensinava Arrastamento, Esticamento e ainda Desmaios em Bobinas.”
“E como é isso?”, disse Alice.
“Bem, eu não vou poder mostrar para você”, completou a Falsa Tartaruga. “Ando meio fora de forma. E o Grifo não aprendeu isso.”
“Não tive tempo”, disse o Grifo. “Eu estudei com o mestre das Clássicas. Ele era um velho caranguejo, se era.”
“Nunca tive aulas com ele”, retomou a Falsa Tartaruga com um suspiro. “Ele ensinava Risando e Desgosto, dizem.”
“É isso mesmo, isso mesmo” disse o Grifo, suspirando também. Os dois esconderam as caras nas patas.


“E quantas horas vocês estudavam por dia?”, perguntou Alice, apressando-se em mudar de assunto.
“Dez horas no primeiro dia”, respondeu a Falsa Tartaruga, “nove no segundo e assim por diante.”
“Que coisa estranha!”, exclamou Alice.
“É por isso que chamávamos as aulas de lições (lessons)”, o Grifo explicou, “porque elas diminuíam (lessen) cada dia.”
Aquela era uma ideia nova para Alice, e ela parou para pensar um pouco antes da sua próxima observação. “Então o décimo-primeiro dia tinha que ser feriado?”
“Claro que era”, respondeu a Falsa Tartaruga.
“E como era no décimo-segundo?”, perguntou com vivacidade Alice.

“Chega de lições”, o Grifo interrompeu em um tom decidido. “Conte a ela sobre os jogos agora.”

Alice no País das Maravilhas.
Lewis Carroll.

Ilustrações de John Tenniel.

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