— E os
meninos? — indagou Narizinho. — Nada viram?
— Os meninos
nada perceberam. Quando a Senhora Darling deu com a sombra na parede, eles já
estavam caindo no sono.
O quarto
ficou mergulhado em silêncio profundo.
Todos
dormiam, e até a chama da lamparina parecia cochilar, de tão quietinha. Mas de
repente essa luz tremeu três vezes e apagou-se.
— Por quê? —
indagou Narizinho.
— Algum
besouro — sugeriu Emília.
— Não —
disse Dona Benta. — É que havia entrado pela janela uma pequena bola de fogo.
— Como havia
entrado pela janela, se a janela estava fechada? — berrou Emília.
— Isso não
sei — disse Dona Benta. — O livro nada conta. Mas como fosse uma bola de fogo
mágica, o caso se torna possível. Para as bolas de fogo mágicas tanto faz uma
janela estar aberta como fechada. Ela acha sempre jeito de entrar. Do contrário
não valia a pena ser bola mágica.
Entrou e
começou a esvoaçar em todas as direções, muito aflitazinha, como quem anda
atrás dalguma coisa.
— Já sei —
interrompeu Narizinho. — Estava procurando a cabeça da sombra.
— Talvez
fosse isso, — concordou Dona Benta — porque depois de várias voltas pelo ar a
bola parou defronte do armário de Wendy e entrou na gaveta pelo buraco da
fechadura.
— E houve um
incêndio, já sei! — gritou Emília. — Bola de fogo em gaveta de armário é
incêndio certo. A cidade de Londres vai ser destruída...
— Credo! —
exclamou tia Nastácia, que estivera cochilando e acordara naquele ponto. — Não
fale assim, Emília, que é mau agouro.
— Não houve
incêndio nenhum — disse Dona Benta. —
Bola de fogo
mágica não pega fogo nas coisas.
— Então que
aconteceu?
— Nada. A
bola ficou na gaveta, e nesse mesmo instante a janela foi erguida pelo lado de
fora. A cabeça dum menino apareceu. Apareceu, espiou de todos os lados e pulou
para dentro do quarto sem fazer o menor barulho.
—
"Sininho, Sininho! Onde está você, Sininho?" — indagou ele em voz
baixa.
— "Tlim,
tlim, tlim", — foi a resposta da bola de fogo lá dentro da gaveta.
O menino
dirigiu-se pé ante pé na direção dos tlins, abriu a gaveta e remexeu-a toda,
até encontrar a cabeça da sombra. Pela cara alegre que fez via-se que era o
dono dela.
— Que
engraçado! — exclamou Emília. — Só agora noto que todos nós temos a nossa
sombra, que é só nossa, mas não de gaze, como a desse menino. É de ar preto.
— E que fez
ele, vovó, depois de achar a sombra? — perguntou a menina.
— Que fez?
Tirou-a da gaveta, desdobrou-a e tratou de emendá-la no resto, porque desde que
a Senhora Darling desceu a janela ele ficou com a sombra sem cabeça — ou decapitada.
Mas isso de emendar sombra não é coisa fácil.
Exige
prática. O menino tentou primeiro grudá-la com cuspe. Não grudou. Lembrou-se de
colá-la com sabão.
Também não
colou. O menino sentiu-se atrapalhado.
— Se fosse
eu — disse Emília — experimentava uma bisnaga de Cola-tudo. O que cola tudo
deve colar sombra também.
— E onde
achar a tal bisnaga de Cola-tudo?
— Todas as
nurserys devem ter uma bisnaga de Cola-tudo para colar os brinquedos. Eu se
fosse a Senhora Darling...
— Está bem,
Emília, mas pare de falar. Não atrapalhe mais. Continue vovó.
Dona Benta
continuou:
— A. cabeça
não colava de jeito nenhum, de modo que o menino foi tomado de grande
desespero. Isso de ter sombra sem cabeça parece ser uma coisa terrível; pelo
menos o era para aquele menino, pois escondeu a cara nas mãos e, pôs-se a
chorar tão alto que Wendy acordou e sentou-se na cama, muito admirada.
— "Por
que está chorando?" — indagou ela.
Em vez de
responder, o menino enxugou depressa os olhos com as costas da mão e fez um
bonito cumprimento com o gorro vermelho. Depois disse:
— "Há
muito tempo que eu ando querendo saber qual é o seu nome."
— "Meu
nome é Wendy Darling" — respondeu a menina.
— "E o
seu?"
—
"Peter Pan."
— "E
onde mora o Senhor Peter Pan?"
— "Moro
na rua das casas, número das portas."
Wendy riu-se
daquela molecagem e puxou prosa.
Conversa
vai, conversa vem, ficou sabendo que Peter Pan era um menino sem pai nem mãe,
que vivia solto pelo mundo e agora estava muito atrapalhado por ter perdido a cabeça
de sua sombra.
— "Não;
gruda nem com sabão" — disse ele fazendo bico.
—
"Bobo!" — exclamou Wendy rindo-se. — “Com sabão está claro que não
gruda”. Sabão só gruda nota velha.
Sombra tem
que ser costurada com retrós, quer ver?”— e sem esperar pela resposta saltou da
cama, foi à sua mesinha de costura e trouxe de lá uma agulha já enfiada”.
Ajeitou a
cabeça da sombra no resto da sombra e num instante alinhavou-a com retrós
preto. Ficou que ninguém percebia a emenda.
—
"Pronto! Vê como está bem agora?"
Peter Pan
pulou de contentamento. Deu várias voltas pela nursery, num verdadeiro namoro
com a sua sombra consertada.
— "Eu
sou mesmo um danadinho!" — exclamou por fim, todo cheio de si.
Tamanha
gabolice espantou Wendy. Ela havia consertado a sombra e o prosa chamava para
si as honras!
Já se viu
uma coisa assim?
—
"Danado, você?" — disse a menina com ironia. — "Se fui eu quem
costurou a sombra, como o danado pode ser você?"
—
"Sim" — disse o menino; — "você ajudou um pouco, não nego."
—
"Ajudou!..." — repetiu Wendy imitando-lhe o tom de voz. — "Pois
nesse caso, passe muito bem! Não gosto de gente gabola."
Disse e
pulou para a cama, deitando-se e cobrindo a cabeça com a colcha.
Peter Pan
desapontou e fez cara de arrependido.
— “Oh, não
se ofenda, Wendy”! Eu tenho este defeito.
Sou gabola
de nascença. Quando qualquer coisa de bom me acontece, ponho-me sem querer a
contar prosa. Seja boa.
Perdoe-me. “Reconheço
que uma menina vale mais do que vinte meninos.”
— Isso
também não! — protestou Pedrinho. — Só se é lá na Inglaterra. Aqui no Brasil um
menino vale pelo menos duas meninas.
— Olhem o
outro gabola! — exclamou Narizinho. —
Vovó já
disse que louvor em boca própria é vitupério.
Wendy —
continuou Dona Benta — enterneceu-se com o tom daquelas palavras e sentou-se de
novo na cama, descobrindo a cabeça. Estava risonha e contente.
—
"Peter Pan" — disse ela — "você bem que merece um beijo.
Quer?"
O menino
ficou no ar, sem compreender. Menino sem mãe é assim, nem beijo sabe o que é.
Beijo! Pensou consigo.
Que seria
isso de beijo? Com certeza era aquele copinho de prata que Wendy tinha posto no
dedo quando tomou a agulha para coser a sua sombra. Não podia ser outra coisa.
—
"Quero" — respondeu ele, e foi logo tirando o dedal do dedo de Wendy
e colocando-o no seu, certo de que beijo queria dizer dedal. Depois, para
retribuir a gentileza, perguntou à menina se ela aceitava um beijo dele.
—
"Aceito, sim" — respondeu Wendy, que estava achando muito curioso
aquilo.
— "Pois
tome este" — disse Peter Pan, arrancando um dos botões de seu casaco e
apresentando-o com toda a seriedade.
— Já sei —
gritou Emília. — Beijo para ele significava presente, um presente qualquer. Que
bobíssimo!
— Wendy —
continuou Dona Benta — recebeu o botão e ficou de olhos postos em Peter Pan.
Súbito, perguntou:
— "Que
idade você tem, Peter Pan?"
— "Não
sei. Só sei que sou bastante criança. Fugi de casa no mesmo dia em que
nasci."
— "No
mesmo dia em que nasceu? Que ideia! E por que, meu caro?"
—
"Porque ouvi uma conversa entre meu pai e minha mãe sobre o que eu havia
de ser quando crescesse. Ora, eu não queria crescer. Não queria, nem quero
nunca virar homem grande, de bigodeira na cara feito taturana. Muito melhor
ficar sempre menino, não acha? Por isso fugi e fui viver com as fadas."
Wendy quase
perdeu a fala de tanto gosto, ao saber que estava diante dum menino conhecedor
de fadas. Ela ouvia sua mãe contar histórias de fadas, mas não havia nunca falado
com alguém que as conhecesse pessoalmente.
— "É
verdade isso, Peter? Há mesmo fadas ou você está a mangar comigo?"
—
"Verdade, sim, Wendy. Não muitas, mas há."
— "E de
onde vêm elas?"
—
"Então não sabe, Wendy? Parece incrível! Não há quem não saiba
disso..."
— "Pois
eu não sei. Conte."
— "Foi
assim. A primeira fada apareceu no mundo do dia em que a primeira criança
nascida deu a primeira risadinha."
— "Oh,
nesse caso deve haver uma fada para cada criança no Inundo, porque todas as
crianças dão uma primeira risadinha" — observou Wendy.
—
"Assim devia ser" — confirmou Peter Pan, — “se as fadas não fossem as
criaturas mais fáceis de morrer que existem”. Morrem como passarinhos. “Cada
vez, por exemplo, que uma criança diz que não acredita em fadas, morre uma.”
Peter Pan
contou a Wendy como as fadas nascem, e ao falar em fada lembrou-se da bola de
fogo que havia entrado na gaveta. Era uma fada, essa bolinha, e muito sua
amiga. Uma fada que fazia tudo que as outras fadas fazem menos falar. Sua fala
não passava daquele tlim, tlim, tlim, de campainha de prata.
Assim que
Peter Pan se lembrou da bola de fogo, ou Sininho, como era o seu nome, um tlim,
tlim zangado se fez ouvir dentro da gaveta.
— "A
pobre!" — exclamou Peter Pan. — "Deve estar furiosa comigo por ter-me
distraído com você e esquecido dela. Sininho é ciumentíssima."
De fato.
Sininho saiu da gaveta furiosa. Esvoaçou pelo quarto por uns instantes, indo
afinal esconder-se num canto, emburrada. Eram ciúmes de Wendy. Mas a menina não
deu nenhuma importância àqueles maus modos; continuou a conversar com Peter Pan
como se não houvesse nada.
—
"Vamos, Peter Pan!" — disse ela. "Conte-me mais alguma coisa da
sua vida. Conte onde mora, mas de verdade."
Onde será
que mora Peter Pan? Outro dia em que
Dona Benta tiver um tempinho vamos saber tudo!
Veja o capítulo anterior clicando AQUI
Domínio Público.
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