No outro
dia, assim que tia Nastácia acendeu o lampião da sala de jantar, o caso da
sombra veio novamente à berlinda. A negra colocou-se entre a luz e a parede e
todos puderam ver que sua sombra havia diminuído de mais um bom pedaço.
— Veja Sinhá
— dizia ela com o beiço pendurado. — Estou só com um toco de sombra. Neste
andar acabo sem sombra nenhuma e vai ser uma grande desgraça...
Dona Benta
pôs os óculos e viu que era isso mesmo.
— O Visconde
ainda não descobriu coisa nenhuma?
— Estou na
pista — respondeu o pequeno Sherlock. — Já examinei cuidadosamente o corte e vi
que foi feito com tesoura. Ando agora a examinar o fio de todas as tesouras existentes
nesta casa. Pela comparação hei de descobrir com qual delas o "rato"
anda cortando esta sombra — e depois...
— E depois o
quê? — perguntou Emília com carinha de santa.
— Depois,
veremos.
Emília fez
um muxoxo e deu uma cuspidinha de desprezo.
— Vamos! Comece
vovó — pediu Narizinho. — Estou ansiosa pelo resto da aventura.
Dona Benta
sentou-se na sua cadeira de pernas serradas e começou:
— Pois muito
que bem. Daquela grande aventura no Lago das Sereias os meninos voltaram com
alguns arranhões, que Wendy tratou de curar como pôde, com um ótimo unguento
faz-de-conta. Todos sararam e a vidinha continuou muito feliz na casa de Wendy
e na caverna subterrânea que a menina arrumara na perfeição.
Essa caverna
era uma gruta natural que as águas haviam escavado na pedra, isso há muitos
milhares de anos. Tão velha, que tinha barbas brancas no teto — ou estalactites.
— Que vem a
ser isso? — perguntou Pedrinho.
Dona Benta
explicou que em muitas cavernas as águas das chuvas se coam através da terra
que há em cima e pingam do teto. Ao atravessarem a camada de terra essas águas
dissolvem certos calcários e, ao pingarem, esses calcários dissolvidos endurecem
outra vez. E com o andar do tempo formam-se compridas estalactites, que são penduricalhos
que descem do teto das cavernas até o chão.
Acontece
também se formarem no chão, nos pontos onde a água pinga endurecimentos do
mesmo gênero, que se chamam estalagmites. As estalactites descem do teto para o
chão e as estalagmites sobem do chão para o teto, até se encontrarem.
Dada a
explicação, Dona Benta continuou:
— Naquelas
estalactites os meninos penduravam mil coisas — cestas de apanhar peixe,
anzóis, varas, porungas e brinquedos construídos por eles próprios. Bem no
centro da caverna existe uma lareira.
— Que é
lareira, vovó? — perguntou Narizinho.
— Aqui no
Brasil temos o clima quente ou temperado e por isso não se usam lareiras nas
casas. Nos países frios, porém, não existe quem não saiba o que é lareira,
porque não existe casa sem lareira. É o lugar de fazer fogo para o aquecimento
da casa. Entre nós, e em todos os países quentes, fogo só há na cozinha, para
cozinhar. Nos países frios, além desse fogo da cozinha há o fogo para aquecer a
casa. Mas isso unicamente nos países atrasados. Nos países adiantados, em vez
da velha lareira existe um sistema de canos de vapor quente que percorrem todos
os quartos e salas por dentro das paredes e os mantém na temperatura que se
deseja.
— Basta,
vovó — disse a menina. — Continue.
Dona Benta
continuou:
— Pois é
como eu ia dizendo. A gentilíssima Wendy deixou a caverna um brinco de asseio e
ordem. Arranjou para os meninos uma cama larga onde todos se arrumavam muito
bem. Também arranjou um berço para o Miguel.
Miguel não
estava mais em idade de berço, mas Wendy era de opinião que não pode existir
casa sem berço, e como fosse ele o mais criança, teve de representar o papel de
bebe. Esse berço não passava duma das cestas de apanhar peixe, arrumada entre
duas estalactites.
Wendy não
esqueceu nem sequer da sua terrível inimiga Sininho. Arranjou-lhe num canto um
quarto de boneca, fechado de cortinas vermelhas e cheio de lindas coisas
minúsculas, próprias para uma fada daquele tamanhinho.
Cadeiras não
havia na gruta, mas havia bancos feitos de chapéu-de-sapo, um para cada menino.
Wendy e Peter Pan usavam uma poltrona especial, feita de duas enormes cabaças
recortadas com muito jeito. Ali se sentavam juntinhos, como fazem os papais e
as mamães que se querem bem.
Certo sábado
à noite estavam todos muito ansiosos à espera de Peter Pan, que saíra pela
manhã numa expedição cinegética.
— Pare aí,
vovó! — berrou Pedrinho. — Essa palavra esquisita me deixou tonto. Que vem a
ser isso?
— Coisa das
mais simples, meu filho. Cinegético quer dizer "relativo a caçada". Expedição
cinegética significa o mesmo que caçada.
— Mas se é
tão simples dizer caçada, por que vem a senhora com essa terrível complicação?
— observou Pedrinho, que era inimigo de palavras difíceis.
— Para você
perguntar e eu ter ocasião de ensinar uma palavra nova que ninguém aqui sabe.
Neste mundo, Pedrinho, precisamos conhecer a linguagem das gentes simples e
também a linguagem dos pedantes — se não os pedantes nos embrulham. Você já
aprendeu o que é cinegético e se em qualquer tempo algum sábio da Grécia quiser
tapear você com um cinegético, em vez de abrir a boca, como um bobo, você já
pode dar uma risadinha de sabidão.
— Vou
aplicar este cinegético já e já, — disse o menino, entusiasmado.
Tia
Nastácia, que saíra para ferver a água do chá, vinha entrando.
— Sabe tia
Nastácia, que amanhã vou fazer uma expedição cinegética?
A palavra
tonteou a negra, fazendo-a piscar três vezes.
— Cine, o
quê?
— Gética.
Ci-ne-gé-ti-ca
Tia Nastácia
arregalou os olhos, sem perceber coisa nenhuma. Depois, voltando-se para Dona
Benta:
— Não deixe ir,
Sinhá. Não sei o que isso é, mas coisa boa não há de ser. Não deixe, Sinhá.
Todos se
riram da pobre preta.
— Vê
Pedrinho, como é bom saber? Essa mesma cara de espanto você faria, se ouvisse
tal palavra antes da minha explicação. Já agora, em vez de ser bobeado, você
bobeia os outros. Está compreendendo a grande vantagem de saber?
— Chega de gramática,
vovó! — protestou a menina. — Vamos à história. Os meninos estavam à espera de
Peter Pan. E depois?
— Pois é. Os
meninos estavam à espera de Peter Pan, que saíra à caça, e em cima da morada
subterrânea Pantera Branca e seus índios montavam guarda.
Súbito, soou
um assobio agudo. Era o sinal de Peter Pan. De longe já ele anunciava a sua
chegada com aquele assobio agudíssimo. Pantera Branca foi ao seu encontro, enquanto
os meninos subiam às árvores para vê-lo chegar.
Cada vez que
Peter Pan vinha duma das suas excursões, era uma festa para a meninada. Como
bom pai, trazia sempre novidades gostosas nos bolsos — frutas do mato, doces,
mil coisas. Os meninos o rodeavam como ratos rodeiam um saco de milho, e cada
qual ia enfiando as mãos nos seus bolsos para pescar o que saísse.
Peter Pan
entrou na caverna e dirigiu-se para o lado de Wendy, naquele momento ocupada em
remendar as meias de Levemente-Estragado. Estava linda no seu vestido cor de outono,
com um galhinho de amora-do-mato nos cabelos.
Narizinho
estranhou aquela expressão "cor de outono."
— Que
história é essa, vovó? O outono é uma das estações do ano, mas não me consta
que tenha cor...
Dona Benta
riu-se.
— Minha
filha, a língua está cheia de expressões poéticas. São os poetas que inventam essas
coisas tão lindinhas para enfeite da linguagem. O outono é a mais linda de
todas as estações nos países frios onde cai neve.
Aqui no
Brasil ninguém percebe diferença grande entre o outono, o verão e o inverno. Na
realidade só temos duas estações — a das águas e a da seca. A vegetação se
mostra intensamente verde na estação das águas, e também verde, essas de um
verde mais sujo, mais seco, na estação da seca — que vai de maio a outubro. Nos
países frios não é assim.
As quatro
estações são perfeitamente definidas.
— Eu sei! —
gritou Pedrinho. — Há a primavera, o verão, o outono e o inverno...
— Isso
mesmo. Na primavera a vegetação desperta do sono do inverno e brota numa grande
alegria de verdes esmeraldinos. Sabe o que é o verde esmeraldino?
Pedrinho
sabia.
— É o verde
cor de esmeralda.
— Sim — um
verde de broto novo, delicado, lindo. Nas laranjeiras você vê muito bem o
verde-esmeralda nos brotos novos e vê o verde carregado do verão nas folhas velhas.
Pois bem: o verde esmeraldino é o verde da primavera; de modo que se um poeta
disser "cor de primavera" a gente já sabe que se trata do
verde-esmeralda.
— Nesse
caso, "cor de verão" deve ser o verde carregado das copas das
laranjeiras — ajuntou Narizinho.
—
Perfeitamente, minha filha. "Cor de verão" só pode ser verde
carregado. "E cor de outono..."
Dona Benta
parou. Tinha primeiro de dar uma ideia do que é o outono nos países frios.
Pensou um bocado e disse:
— O outono é
a mais linda, a mais poética estação do ano nos países frios. A vegetação
inteirinha muda de cor.
Tudo que é
verde passa a amarelo ou vermelho.
— Então fica
lindo...
— Sim, a
natureza toda fica como um sonho de beleza.
Tudo amarelo
e vermelho. A gama inteira dos amarelos e vermelhos... No começo, amarelos e
vermelhos muito vivos, novinhos ainda. Depois, mais murchos; e por fim, uns amarelos
e vermelhos mortos, embaçados, sujos, porque toda a folharada das árvores vai
caminhando para o tom pardo, que é o tom da morte das folhas diante do inverno que
se aproxima. Estão entendendo?
— Estamos
vovó — responderam os dois meninos. — Apesar da sua linguagem elevada estamos
entendendo muito bem. E já percebemos o que é "cor de outono", — acrescentou
Narizinho. — o tom de palha, não é isso mesmo?
Dona Benta
abraçou a sua neta.
— Isso
mesmo. É o tom da palha, da folha murcha, já quase sem cor.
Emília meteu
o bedelho:
— Já sei. É
cor de burro quando foge...
Dona Benta
riu-se.
— E qual a
cor do burro quando foge, Emília?
A diabinha
não se atrapalhou:
— É cor de
outono... Narizinho, ansiosa pela continuação da história de Peter Pan, pôs fim
naquela dança das cores.
— Chega de
cor, vovó. Continue...
E a história
continua, aguarde o próximo capítulo.
História em Domínio Público
Um comentário:
Posta o resto... Preciso urgente para um teatro de fantoches e queria a história completa por favor...
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