domingo, 28 de agosto de 2022

O linho.

Narrador: O linho estava em flor. Com as mais lindas flores azuis, tão suaves e delicadas quanto asas de uma borboleta; quem sabe até mais.

O sol brilhava sobre o linho e as nuvens de chuva o banhavam; era tão bom para ele quanto para as crianças pequenas serem banhadas e depois ganharem um beijo da mamãe. Elas se sentem muito melhor depois, não é verdade? E assim também se sentia o linho.

Linho: Dizem que estou me saindo muito bem.

Que estou ficando cada vez mais alto e belo. De mim vão tirar um bom corte de tecido. Eu sou muito sortudo! Devo ser o mais sortudo de todos os linhos!

Sou tão sortudo que sei que posso ir longe na vida.

O sol me dá força e como gosto do frescor da chuva!

Sim, sou o mais sortudo. Sou o mais sortudo de todos.

 

Narrador: Mas as estacas da cerca não pensavam bem assim.

Estacas da cerca: Ora, ora, ora. Você não sabe nada da vida, mas nós sabemos. Temos até cicatrizes para comprovar.

Efeito sonoro: Cric, crec, crac (som de madeira rangendo).

Estacas da cerca: Pim, pam, pum, a canção acabou!

 

Linho: Não, ela não acabou. O sol vai brilhar amanhã; a chuva é tão refrescante. Posso ver que estou crescendo; posso sentir que estou florindo. Sim, sou o mais sortudo de todos.

Narrador: Até que um dia, o linho foi arrancado com raiz e tudo – e doeu muito. E ele foi deixado na água, como se quisessem afogá-lo, e depois levado ao fogo, como se quisessem cozinhá-lo. Foi terrível!

Linho: Não dá pra estar sempre por cima; é melhor analisar as coisas antes de julgá-las.

Narrador: E as coisas não poderiam ir de mal a pior. O linho foi machucado, quebrado, queimado, retalhado e sabe lá Deus mais o quê. Foi colocado em uma roda de fiar. Era impossível organizar os pensamentos, sendo jogado de lá para cá.

Linho: Tenho sido sortudo demais. É preciso ser grato por tudo de bom que se tem na vida. Ser grato...

Ah, ser grato.

Narrador: E então ele se transformou em um grande e esplêndido corte de tecido. O linho inteiro, cada pedacinho dele transformou-se num só corte de tecido.

Linho: Ah, nunca pensei que algo assim pudesse acontecer comigo. Com certeza, a sorte está do meu lado. E aquelas estacas de cerca diziam que sabiam de tudo. Não. É verdade que tive momentos difíceis, mas tirei algo de bom de tudo isso: sou o mais sortudo de todos. Sou tão forte e suave, tão alvo e tão grande. Não é que até mesmo a esposa do pastor falou de mim? Disse que eu sou o melhor corte de tecido da paróquia! Não posso ser mais sortudo do que sou.

Narrador: E então o linho foi levado para dentro da casa e caiu na tesoura. Foi cortado, recortado e espetado por agulhas.

Linho: Ah, que tortura! Não foi nada divertido.

Narrador: Então, o linho foi transformado em doze daquelas coisas... Aquelas coisas sobre o que as pessoas não falam muito, mas que são usadas por todos – sim, uma dúzia inteirinha delas.

Linho: Ah, olha só isso! Pelo menos, me tornei alguma coisa importante. É o meu destino... Ah, é tão maravilhoso!

Agora serei útil para o mundo e é assim que tem que ser; é o prazer do dever cumprido. Fomos transformados em doze peças de roupa; e ainda assim, todas nós formamos uma coisa só, formamos uma dúzia. Que sorte, que maravilha!

Narrador: Os anos se passaram – e a última das peças se transformou em farrapos.

Tecido de linho: Um dia, tudo tem um fim. Eu gostaria de ter durado um pouco mais, mas não adianta querer o impossível.

Narrador: Foram transformadas em trapos e retalhos, aí, acharam que tudo tinha terminado, mas então, foram rasgadas, esmagadas, fervidas e sabe-se lá mais o quê – e lá estavam elas, transformadas no mais delicado papel branco!

Papel: Ora, que surpresa! – que surpresa maravilhosa! Agora estou melhor do que nunca, agora vão escrever em mim. Não há limites para o que podem escrever em mim. É uma sorte que eu não esperava.

Narrador: E nele foram escritas as mais encantadoras histórias que as pessoas liam. Boas histórias que tornavam os homens melhores e mais sábios.

As palavras colocadas no papel foram uma bênção para muitos.

Papel: É muito mais do que eu sonhei quando era uma florzinha azul no campo. Como eu poderia imaginar que um dia levaria tanto conhecimento e tanta alegria para a humanidade. Eu ainda não consigo entender. Vejam só! Realmente aconteceu! Só Deus sabe que a única coisa que eu fiz foi existir.

Ainda assim, suportei tudo para a felicidade de uns e para a glória de outros. Toda vez que penso a canção acabou, simplesmente acontece algo maior e muito melhor. Tenho certeza de que agora vou viajar, que serei mandado para todos os cantos do mundo para que toda a humanidade possa ler o que está em mim. Eu tinha apenas uma flor azul e agora tenho as mais maravilhosas ideias do mundo. Eu sou o mais sortudo de todos!

Narrador: O papel não seguiu viagem. Foi mandado para a gráfica e transformado em livro; na verdade, em milhares de livros, pois dessa maneira, muito mais pessoas poderiam se beneficiar dele do que se fosse só um papel escrito viajando pelo mundo, e que, quando chegasse no meio do caminho, já estaria gasto.

Papel: Sim. No final das contas, é o melhor que poderia ter me acontecido. Devo ficar em casa e ser respeitado como nosso vovô. Foi em mim que escreveram; foi para mim que as palavras fluíram diretamente da caneta. Fico aqui enquanto os livros viajam pelo mundo. Agora tenho a chance de fazer alguma coisa mais importante. Ah, estou tão feliz, sou tão sortudo!

Narrador: O papel foi então amarrado, empacotado e deixado em uma prateleira.

Papel: O repouso é doce depois que o trabalho foi feito. É bem verdade que devemos nos aceitar como somos e pensar seriamente no que somos. Só agora é que realmente consigo me entender. ‘Conhece-te a ti mesmo’ – é o verdadeiro passo para o autoconhecimento. O que vai acontecer depois, eu me pergunto?

 

Algum outro tipo de progresso? Sempre em frente!

Narrador: O papel foi colocado no fogo para ser queimado, já que não poderia ser vendido na mercearia para embrulhar manteiga e açúcar.

Foi então que todas as crianças da casa ficaram à sua volta para vê-lo queimar; elas queriam ver as chamas soltarem todas aquelas faíscas vermelhas, que pareciam rodopiar no ar antes de sumirem, uma após a outra, tão rápido. Eram como crianças correndo da escola e a última de todas as faíscas era o diretor. Às vezes, parece que ele já foi embora; mas aí, lá vem ele, um pouco depois de todos os outros. Todos os papéis estavam em um maço no fogo.

A chama ardia mais alto, no ar, mais alto do que o linho havia sido capaz de erguer a sua florzinha azul, e brilhava mais do que fora capaz de brilhar; todas as letras que estavam escritas nele ficaram completamente vermelhas em instantes; e as palavras e os pensamentos subiram em labaredas.

Papel: Agora, alcançarei o sol.

Narrador: Foi o grito vindo da chama, como se milhares de vozes gritassem ao mesmo tempo.

 

Então, a chama saiu pela chaminé... E, mais delicados do que a chama, completamente invisíveis a olho nu, pairavam no ar seres minúsculos, tantos seres quantas tinham sido as flores do linho. Eram ainda mais leves do que a chama de onde vieram e quando a chama se foi, tudo o que restou do papel foram as cinzas escuras.

Os pequenos seres dançavam ao redor das cinzas e toda vez que as tocavam, era possível ver suas pegadas. As faíscas vermelhas eram como crianças correndo da escola. A última de todas as faíscas era o diretor. E que divertido observar tudo aquilo: as crianças da casa cantando sobre as cinzas.

Crianças: Pim pam pum a canção acabou!

Narrador: Mas as faíscas diziam:

Faíscas: Não, não, a música nunca acaba! E é o mais fascinante de tudo. Eu sei e é por isso que sou o mais sortudo de todos.

Narrador: As crianças não poderiam entender, talvez nem mesmo conseguissem ouvir as faíscas.

Na verdade, nem deveriam, pois as crianças não precisam saber de tudo.

Tradução de “O Linho”, “The flax”, de Hans Christian Andersen; obra em domínio público.

5 comentários:

Cidália Ferreira disse...

Maravilhoso...Adorei!
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Vestida de emoções, sem preconceito

Beijos. Votos de uma excelente semana.

Parapeito disse...

Que maravilha.
Que riqueza, que aprendizado.
Não conhecia este conto. Adorei.
Uma lição de vida.
Grata por tão excelente momento.
Brisas doces ***

Rajani Rehana disse...

Great blog

Rajani Rehana disse...

Great blog

A Paixão da Isa disse...

amiga obrigada pelo seu carinho no meu cantinho nao encontro o seu novo blog mas adorei este post bjs