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Na terceira
noite tia Nastácia apareceu na sala ainda mais desapontada do que na véspera. O
que estava acontecendo com a sua pobre sombra era simplesmente monstruoso.
— Veja Sinhá
— disse ela paxá Dona Benta, colocando-se entre a parede e o lampião de modo a
tornar a sombra bem visível.
— Veja
Sinhá, como está toda rendada a minha sombra. O ladrão, que ontem me cortou a
cabeça dela e um pedaço do ombro, acaba hoje de cortar uma porção de outros
pedacinhos.
Realmente
assim era. O resto da sombra da pobre negra estava todo picado de buracos
feitos à tesoura.
— É um
mistério que não consigo decifrar — disse Dona Benta sacudindo a. cabeça. — O
Visconde, o nosso grande detetive, bem que podia tomar conta deste caso. Fale
com ele.
Tia Nastácia
conferenciou com o Visconde, obtendo do grande detetive a promessa de
"investigar."
— Deixe a
coisa comigo — disse ele. — Já resolvi aquele célebre caso do falso gato Félix
e posso muito bem resolver este do ladrão de sombras. Deixe a coisa comigo.
Liquidado o
incidente, Dona Benta retomou a história de Peter Pan no ponto em que a tinha
deixado na véspera.
— Onde estávamos
mesmo? — perguntou ao sentar-se em sua cadeira de pernas serradas.
— Os meninos
perdidos haviam construído a casinha de Wendy e todos dormiram dentro dela,
menos Peter Pan, que ficou de guarda — lembrou Narizinho.
— Sim, é
isso mesmo — confirmou Dona Benta. —
Dormiram na
casinha a primeira noite e depois outras.
Durante toda
uma semana os meninos não se afastaram dali. Estavam encantados com a mãezinha
que Peter Pan lhes arranjara e Wendy estava igualmente encantada com os seus
seis filhos. A felicidade naquele acampamento seria completa, se não fosse a
tristeza em que havia caído a fada Sininho. Vivia sempre emburrada, escondida
pelos cantos, sem coragem de falar com Peter Pan.
Mas tudo
cansa. Ao fim da primeira semana. Wendy mostrou vontade de sair a passeio pela
floresta, ou algum outro lugar.
—
"Podemos ir à Lagoa das Sereias" — propôs Peter Pan.
— "A
nossa Terra do Nunca não possui unicamente coisas terríveis, como os piratas e
os lobos famintos. Esse Lago das Sereias é lindo, lindo!"
A ideia foi
recebida com entusiasmo. Wendy e seus irmãozinhos só conheciam as sereias dos
livros de figura.
Sereias de
verdade, com cauda de peixe e escamas, bem vivas e perigosas, nunca haviam
visto nenhuma, por não serem criaturas encontráveis no jardim zoológico de Londres.
Havia lá de tudo — hipopótamos, rinocerontes, leões, tigres, girafas, serpentes,
ursos, focas — mas sereia, nenhuma.
—
"Vamos, vamos ver as sereias!" — gritaram todos no maior
assanhamento.
Num minuto
fizeram-se os necessários preparativos e lá se foram todos. Depois de longa
viagem avistaram o grande lago verde-mar, em cujo fundo se erguia o palácio
encantado das sereias. Às vezes todas elas vinham à tona para se pentearem ao
sol, espalhadas pelos rochedos. Outras vezes só se via por ali uma ou outra.
Quando os
meninos chegaram à beira d’água, só encontraram uma.
— "Que
beleza!" — exclamou Wendy, enlevada. — "Tal qual uma que vem pintada
no meu livro de capa azul.
Vejam como
as escamas brilham ao sol! Parecem de prata..."
Era na
verdade uma das mais lindas sereias do bando.
Tinha os
cabelos cor de ouro e bronze misturados, com reflexos verdes. Estava reclinada
sobre um rochedo e enquanto cantava corria um pente de ouro pelos cabelos maravilhosos.
— E era
lindo esse canto? — indagou Narizinho.
— Oh, nem
queira saber! — disse Dona Benta. Ninguém pode dar ideia da beleza do canto das
sereias. Só ouvindo.
Tão
diferente do canto das criaturas humanas que é até perigoso para nós. Grandes
desgraças têm acontecido no mar aos marinheiros que ouviram tais cantos.
— É verdade,
vovó, que os marinheiros antigamente entupiam os ouvidos com chumaços de
algodão sempre que avistavam uma sereia? — perguntou Pedrinho.
— Deve ser.
Não fazendo isso, esse canto maravilhoso deixa os marinheiros embriagados e
eles erram todas as manobras do navio, puxam esta corda em vez daquela, botam
garrafas de vinho no anzol em vez de iscas — atrapalham tudo, tudo. Resultado:
o navio perde o rumo, dá com o bico numa pedra e afunda.
Os meninos
perdidos tinham muita vontade de apanhar uma sereia viva, coisa quase
impossível por serem espertas demais. Não há lambari arisco que tenha a ligeireza
duma sereia. Eles já haviam tentado várias vezes e agora iam tentar novamente.
— Como?
— O meio era
um só — meterem-se n’água de jeito que a sereia não os visse e fecharem o
cerco. Assim fizeram.
Meteram-se
todos n’água e foram nadando sem fazer o menor barulhinho, até que...
— Pegaram? —
indagou Narizinho, ansiosa.
— Pegaram
nada! A sereia os percebeu e soltou um grito agudo: Mortais! Mergulhando em
seguida.
Ficaram
todos desapontadíssimos e Miguel chegou a fazer cara de choro. Se não chorou de
verdade foi porque Bicudo avistou outra sereia numa rocha mais adiante.
— "Lá
está uma sereia-menina, das fáceis de pegar!" — cochichou ele, apontando.
— "Temos que ir com muitas cautelas."
Era uma
sereiazinha das mais lindas que a gente possa imaginar. Teria aí seus sete anos
de idade, já sabia pentear-se com o seu pentinho de ouro e já começava a cantar
as primeiras cantigas. Tão distraída estava a seguir os movimentos dum caranguejo
na pedra, que deixou os meninos se aproximarem até bem perto. Miguel, que vinha
na frente, não se conteve e — zás! — deu um pulo em cima dela.
— Pegou? —
quis saber Narizinho, ansiosíssima.
— Desta vez
pegou — respondeu Dona Benta — mas não a segurou bem. As sereias são as
criaturas mais lisas que existem, dez vezes mais que o sabão, de modo que a sereiazinha
escorregou das unhas de Miguel e lá se foi para o fundo, tal qual a primeira.
— Que pena
vovó! — exclamou Narizinho. — Todas as histórias de sereias acabam sempre
assim. Quando chega a hora de agarrar uma, acontece isto ou aquilo e elas escapam...
— Hei de
fazer uma história diferente — declarou Emília. Uma história onde todas as
sereias sejam agarradas e amarradas e trazidas para a cidade dentro dum
caminhão.
— Pois você errará
Emília, se escrever uma história assim — disse Dona Benta. — Além de ser uma
judiação arrancar do seu elemento criaturas tão lindas, essa pesca e essa
trazida para a cidade em caminhão viria destruir a beleza e o mistério das sereias.
Sabe o que acontecia? Os jornais davam o retrato delas impresso em tinta preta
(nos livros elas aparecem em lindas pinturas de cores macias); os sábios de
óculos vinham estudá-las, isto é, abri-las com as suas facas chamadas bisturis
para ver o que tinham dentro, e mil outros horrores. Não, Emília. É melhor que ninguém
nunca pegue uma sereia — nem você tampouco.
Na sua
historinha, agarre a sereia, mas faça que ela escape no momento de entrar para
o caminhão. Ficará muito mais poética a sua historinha, eu garanto.
— Credo! Disse
tia Nastácia. — Os homens são tão malvados que até eram capazes de picar as
coitadas em pedaços, para vender nos açougues lombo de sereia, entrecosto de
sereia, rabo de sereia, miolo de sereia...
— Continue
vovó — pediu Pedrinho. — A sereiazinha escapou e...
— E sumiu-se
no fundo d’água, indo avisar as outras, de modo que naquele dia não houve mais
sereias na superfície do lago.
— E os
meninos voltaram para a casinha de Wendy...
— Não. Em
vez de sereia apareceu ao longe um bote.
Os piratas
do Capitão Gancho, que haviam ancorado o seu navio a uns dez ou doze
quilômetros daquele ponto, lá vinham vindo de bote para o lado dos pegadores de
sereias.
Como fosse
grande o perigo, a meninada tratou de voltar para a praia quanto antes. O meio
era um só — nadar, e lançaram-se à água e nadaram para terra sem sequer volver
os olhos para trás. Só Peter Pan se animou a fazer isso. Olhou e viu que Pantera
Branca, a chefa dos índios Peles-Vermelhas, vinha de pé à proa do bote,
amarrada com cordas.
Peter Pan
franziu a testa. Fazia assim sempre que tinha de resolver um problema urgente.
Parece que com o tal franzimento de testa ele espremia o cérebro para que espirrasse
alguma boa ideia. — "Já sei" — murmurou para si mesmo logo depois. —
"Os terríveis piratas derrotaram os índios e aprisionaram Pantera Branca,
e agora vão abandoná-la num rochedo para que morra afogada pela
maré."
Peter Pan
tinha adivinhado. O bote dirigia-se para o rochedo onde estivera a sereia
grande, com ordem do Capitão Gancho para largar lá a índia, bem amarrada com grossas
cordas.
"Mas
isso não pode ser!" — pensou consigo Peter Pan.
"Preciso
salvar a pobre criatura, custe o que custar. Pantera Branca é nossa aliada e
nossa amiga." — Franziu de novo a
testa e
imediatamente espirrou de dentro do seu cérebro outra ideia muito boa.
— Qual foi?
— quis saber Pedrinho.
Você quer
saber a ideia de Peter Pan? Vamos aguardar o próximo episódio.
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