Pedrinho, na
varanda, lia um jornal. De repente parou, e disse a Emília, que andava rondando
por ali:
— Vá
perguntar a vovó o que quer dizer folclore.
— Vá? Dobre
a língua. Eu só faço coisas quando me pedem por favor.
Pedrinho,
que estava com preguiça de levantar-se, cedeu à exigência da ex-boneca.
— Emilinha
do coração — disse ele — faça-me o maravilhoso favor de ir perguntar à vovó que
coisa significa a palavra folclore, sim, teteia?
Emília foi e
voltou com a resposta.
— Dona Benta
disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer dizer sabedoria, ciência.
Folclore são as coisas que o povo sabe por boca, de um contar para o outro, de
pais a filhos — os contos, as histórias, as anedotas, as superstições, as
bobagens, a sabedoria popular, etc. e tal. Por que pergunta isso, Pedrinho?
O menino
calou-se. Estava pensativo, com os olhos lá longe. Depois disse:
— Uma ideia
que eu tive. Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando, de um
para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer tia Nastácia para
tirar o leite do folclore que há nela.
Emília
arregalou os olhos.
— Não está
má a ideia, não, Pedrinho! Às vezes a gente tem uma coisa muito interessante em
casa e nem percebe.
— As negras
velhas — disse Pedrinho — são sempre muito sabidas.
Mamãe conta
de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome
Esméria, que foi escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda
e desfiava histórias e mais histórias. Quem sabe se tia Nastácia não é uma
segunda tia Esméria?
Foi assim
que nasceram as Histórias de Tia Nastácia.
O bicho Manjaléu.
Era uma vez
um velho que tinha três filhas muito bonitas, mas um velho muito pobre, que
vivia de fazer gamelas. Uma vez passou pela sua casa um lindo moço a cavalo;
parou e declarou que queria comprar uma das moças. O velho se ofendeu; disse
que por ser pobre não era nenhum malvado que andasse vendendo as filhas; mas
diante das ameaças do moço teve que aceitar o negócio.
Lá se foi a
sua primeira filha na garupa do cavaleiro, e o velho ficou olhando para o ouro
recebido.
No dia
seguinte apareceu outro moço, ainda mais lindo, montado num cavalo ainda mais
bonito e propôs-se a comprar a filha do meio. O velho, bastante aborrecido,
contou o que se tinha passado com a primeira, e não quis aceitar o negócio. O
moço ameaçou matá-lo, e também lá se foi com a segunda moça na garupa, deixando
com o velho dois sacos de dinheiro.
No dia
imediato apareceu terceiro moço e depois da mesma discussão lá se foi com a
derradeira moça na garupa, deixando em troca três sacos de dinheiro.
O velho
ficou muito rico, mas sem as filhas, e começou a criar com grandes mimos um
filhinho que havia nascido fora de tempo. Quando já estava na escola esse
menino teve uma briga com um companheiro, o qual lhe disse: "Você está
prosa por ter pai rico, mas saiba que ele já foi um pobre diabo que vivia de
fazer gamelas. Está rico porque vendeu as filhas."
O menino
voltou pensativo para casa, mas nada disse. Só quando ficou moço é que pediu ao
pai que lhe contasse a história das três irmãs vendidas. O pai contou tudo e
ele resolveu sair pelo mundo em procura das irmãs.
No meio do
caminho encontrou três marmanjos brigando por causa duma bota, duma carapuça e
duma chave. Indagando do valor daquilo, soube que eram uma bota, uma carapuça e
uma chave mágicas. Quando alguém dizia à bota: "Bota, bote-me em tal parte!"
a bota botava. E se diziam à carapuça: "Carapuça, encarapuce-me!" a
carapuça encarapuçava, isto é, escondia a pessoa. E se diziam à chave:
"Chave, abre!" a chave abria qualquer porta.
O moço
ofereceu pelos três objetos o dinheiro que trazia e lá se foi com eles.
Logo adiante
parou e disse: "Bota, bote-me em casa de minha primeira irmã." Mal
acabou de pronunciar tais palavras, já se achou na porta de um palácio
maravilhoso. Falou com o porteiro. Pediu para entrar, dizendo que a dona do
palácio era sua irmã. A irmã soube da sua chegada, acreditou em suas palavras e
o recebeu muito bem.
— Mas como
conseguiu chegar até aqui, meu irmão?
— Por meio
da bota mágica — respondeu ele.
E contou
toda a história da sua partida e do encontro dos três objetos mágicos.
Tudo correu
bem, mas assim que começou a entardecer a irmã pôs-se a chorar.
— Por que
chora, minha irmã?
— Ah —
respondeu ela — choro porque sou casada com o rei dos Peixes, um príncipe muito
bravo que não quer que eu receba ninguém neste palácio. Ele não tarda a chegar,
e mata você, se enxergar você aqui...
O moço deu
uma risadinha, dizendo:
—Não tenha
medo de nada. Com a carapuça mágica saberei esconder-me.
O rei chegou
e logo levantou o nariz para o ar, farejando: — "Sinto cheiro de gente de
fora!" mas a rainha mostrou que não havia por ali ninguém e ele sossegou.
Tomou um banho e se desencantou num lindo moço.
Durante o
jantar a rainha fez esta pergunta:
— Se
aparecesse por cá um irmão meu, que faria Vossa Majestade?
— Recebia-o
muito bem — disse o rei — porque o irmão da rainha, cunhado do rei é. E se ele
está por aqui, que apareça.
O irmão
encarapuçado apresentou-se, sendo muito bem recebido.
Contou toda
a sua história, mas não aceitou o convite de ficar morando ali por ter de
continuar pelo mundo em procura das outras irmãs. O rei olhou com inveja para
as botas mágicas, dizendo: "Se eu as pilhasse, iria ver a rainha de
Castela."
Na hora da
partida o rei deu-lhe uma escama. "Quando estiver em apuros, pegue nesta
escama e diga: Valha-me, rei dos Peixes!"
O moço
agradeceu o presente e lá se foi depois de dizer à bota: "Bota, bote-me na
casa de minha segunda irmã", e imediatamente se achou defronte de outro
palácio, onde foi recebido pela segunda irmã, que era a esposa do rei dos
Carneiros. "Meu marido logo chega por aí, a dar marradas a torto e a
direito, e você não escapa."
— Com a
minha carapuça escapo — respondeu o rapaz, rindo-se. E contou a virtude da
carapuça encantada. E de fato foi assim, correndo tudo direitinho como lá no
palácio do rei dos Peixes. Na hora da partida o rei dos Carneiros disse:
"Tome este fio de lã. Quando estiver em apuros, basta que pegue nele e
diga: Valha-me, rei dos Carneiros." Em seguida olhou com inveja para as
botas mágicas. "Se as pilhasse, iria ver a rainha de Castela."
Logo que o
moço se viu na estrada, parou e disse à bota. "Bota, bote-me em casa da
minha terceira irmã", e a bota botou-o no portão dum terceiro palácio
ainda mais belo que os outros. Era ali o reino do rei dos Pombos, onde tudo
aconteceu como no reino do rei dos Peixes e no reino do rei dos Carneiros. Foi
muito bem recebido e festejado, até que na hora da partida o rei dos Pombos
suspirou olhando para as botas, e disse: "Se eu pilhasse essas botas, iria
ver a rainha de Castela." Em seguida deu ao moço uma pena, dizendo:
"Quando
estiver em apuros, pegue nesta pena e diga: Valha-me, rei dos Pombos."
Logo que o
moço se viu na estrada, pôs-se a pensar na tal rainha de Castela que os três
príncipes queriam visitar, e disse à bota mágica: "Bota, bote-me no reino
da rainha de Castela!" E num instante a bota o botou lá.
Soube que
era uma princesa solteira, tão linda que ninguém passava pela frente do seu
palácio sem erguer os olhos, na esperança de vê-la à janela — mas a princesa
tinha jurado só se casar com quem passasse pelo palácio sem erguer os olhos.
O moço então
passou pela frente do palácio sem erguer os olhos e a princesa imediatamente
casou com ele. Depois do casamento a princesa quis saber para que serviam
aqueles objetos que ele sempre trazia consigo— e o que mais a interessou foi a
chave de abrir todas as portas.
A razão
disso era haver no palácio uma sala sempre fechada, onde o rei não permitia que
ninguém entrasse. Nela morava o Manjaléu — um bicho feroz, que por mais que o
matassem revivia sempre. A princesa andava ardendo de curiosidade de ver o bicho
Manjaléu, e certa vez, em que o rei e o marido foram à caça, pegou a chave e
abriu a porta da sala do mistério. Mas o bicho feroz pulou e agarrou-a,
dizendo: "Era você mesma que eu queria!" E lá se foi para a floresta
com a pobre moça ao ombro Quando o rei e o marido da princesa voltaram da caça
e souberam do acontecido, ficaram desesperados. Mas o dono das botas mágicas
prometeu consertar tudo. Agarrou-as e disse: "Bota, bote-me onde está
minha esposa".
E a bota
botou-o.
O moço
encontrou a princesa sozinha, pois que o Manjaléu andava pelo mato caçando.
— Minha querida
esposa — disse ele — precisamos dar cabo desse monstro feroz, mas para isso é
necessário que eu saiba onde é que ele tem a vida. A vida do Manjaléu está tão
bem oculta que todas as tentativas para matá-lo têm falhado. Trate de saber
onde ele tem a vida.
A princesa
prometeu que assim faria, e quando o Manjaléu voltou deu jeito da conversa
recair naquele ponto.
Manjaléu
desconfiou.
— Ahn! Quer
saber onde eu tenho a vida para me matar, não é? Não conto, não.
Mas a
princesa, teimosa, tanto insistiu durante dias e dias que o bicho Manjaléu
resolveu contar tudo. Antes disso ele amolou bem amolado, um alfanje, dizendo:
"Vou contar onde está minha vida, mas se perceber que alguém quer dar cabo
de mim corto sua cabeça com este alfanje, está ouvindo?"
A princesa
aceitou a proposta. Ele que contasse tudo que ela ficaria com o pescoço às
ordens do alfanje, no caso de alguém atentar contra vida do monstro. E o bicho
Manjaléu então contou: "Minha vida está no mar. Lá no fundo há um caixão;
nesse caixão há uma pedra; dentro da pedra há uma pomba; dentro da pomba há um
ovo; dentro do ovo há uma velinha, que é a minha vida. Quando essa vela
apagar-se, eu morrerei".
No dia
seguinte, quando o bicho Manjaléu saiu novamente a caçar, o marido da princesa,
que estivera escondido pela carapuça, apresentou-se.
"E
então?" — perguntou. A princesa contou-lhe direitinho tudo que ouvira ao
monstro.
O moço
dirigiu-se à praia do mar e pegou na escama, dizendo:
"Valha-me,
rei dos Peixes!" E imediatamente o mar se coalhou de peixes que indagavam
do que ele queria.
— Quero
saber em que ponto do fundo do mar há um caixão assim e assim.
— Eu sei —
respondeu um enorme baiacu.
— Ainda há
pouquinho esbarrei nele. Esse caixão está em tal e tal parte.
— Pois quero
que me tragam aqui esse caixão.
Os peixes
saíram na volada; logo depois apareceram empurrando um caixão para a praia. O
príncipe abriu-o e encontrou a pedra. Como quebra-la?
Lembrou--se
do fio de lã. Pegou no fio de lã e disse: "Valha-me, rei dos Carneiros!"
Imediatamente apareceram inúmeros carneiros, que deram tantas marradas na pedra
que a partiram.
Enquanto
isso, lá longe, o Manjaléu, com a cabeça no colo da princesa e o alfanje na
mão, ia sentindo coisas esquisitas.
— Minha
princesa — disse ele — estou me sentindo doente. Alguém está mexendo na minha
vida.
E sua mão
apertou o cabo do alfanje.
A princesa
engambelou-o como pôde, para ganhar tempo. Ela sabia que seu marido estava em
procura da vida do monstro.
Assim que os
carneiros quebraram a pedra, uma pombinha voou de dentro e lá se foi pelos
ares. O moço lembrou-se da pena, pegou-a e disse:
"Valha-me,
rei dos Pombos!" Imediatamente o ar se encheu de pombos, que o moço mandou
voarem em perseguição da pombinha. Os pombos foram atrás dela e a pegaram. O
moço tomou-a, espremeu-a e fez sair um ovo.
Lá longe o
Manjaléu se sentia cada vez pior. Começava a desfalecer; e como não tivesse
dúvidas sobre o que era aquilo, foi levantando o alfanje para degolar a
princesa. Mas não teve tempo. O moço havia quebrado o ovo e assoprado a
velinha. A mão do Manjaléu moleou — e seus olhos fecharam-se para sempre.
Estava o
reino de Castela livre daquele horrendo monstro. O moço levou a princesa para o
palácio, onde o rei a recebeu com lágrimas nos olhos. E para comemorar o grande
acontecimento decretou uma semana inteira de festas. E acabou-se a história.
Histórias de
Tia Nastácia – Monteiro Lobato.
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