A história
de Xerazad.
Ouve, muito
tempo atrás, um rei poderosíssimo, da dinastia dos antigos reis persas, que
dominaram até a Índia e a China. Seu povo o amava por sua sabedoria e
prudência. Quando morreu, o poder passou às mãos do filho mais velho, Xariar.
Homem justo,
Xariar fez
questão de que seu irmão mais novo, Xazaman, também governasse ao seu lado.
Deu-lhe, então, um de seus reinos, cuja capital era a cidade de Samarcanda.
Passaram-se vinte anos de prosperidade, cada irmão vivendo em seu reino. Mas um
dia Xariar, não suportando mais a saudade, decidiu rever Xazaman. Ordenou a seu
grão-vizir que fosse até o irmão entregar-lhe os mais ricos presentes e um
convite para vir visita lo.
– Seu desejo
é uma ordem – disse o grão-vizir.
E partiu o
mais rápido que pôde.
Ao saber que
o grão-vizir se aproximava da cidade, Xazaman foi ao seu encontro e pediu
notícias do irmão. O grão-vizir, então, transmitiu as palavras do soberano.
Xazaman ficou comovido e disse:
– Meu irmão,
o sultão, honra-me com esse convite.
Estou morto
de vontade de o rever. Mas preciso de dez dias para
preparar a
viagem e partir. Fiquem em meu reino e partiremos juntos. Não é preciso que
vocês se desloquem até a cidade: armem aqui mesmo suas tendas.
Ordenarei
que você e a sua comitiva sejam muito bem tratados!
O vizir
aceitou a oferta. Xazaman se dirigiu a Samarcanda para cuidar dos preparativos
da viagem.
Nomeou um
conselho para cuidar de tudo durante a sua ausência; no comando, colocou um
homem de sua total confiança. Dez dias depois, encaminhou-se até onde estavam
as tendas. Então, desejando abraçar a esposa mais uma vez antes da partida, voltou
sozinho ao palácio. Foi até os aposentos da rainha; ela, que não esperava
revê-lo tão cedo, tinha introduzido no quarto um dos criados do marido. Qual
não foi a emoção de Xazaman quando, chegando sem fazer ruído para fazer uma
surpresa à esposa, por quem se julgava muito amado, avistou em seu quarto, à
luz das tochas, um outro homem!
Furioso, Xazaman
pegou seu sabre e, num segundo, deu aos dois o sono da morte. Em seguida, saiu
da cidade e se dirigiu às tendas. Sem contar a ninguém o que tinha acontecido,
deu ordem de partir imediatamente. Antes de raiar o dia, partiram todos.
É fácil
imaginar a alegria de Xariar e Xazaman quando se reencontraram depois de tantos
anos!
Abraçaram-se,
trocaram mil manifestações de afeto e entraram na cidade, em meio aos gritos de
alegria da multidão. O sultão levou seu irmão a um palácio que tinha
comunicação com o seu e possuía um belíssimo jardim.
À noite,
celebraram o reencontro com um jantar que durou até tarde. Depois, cada um se
recolheu a seu quarto. Xazaman tinha passado momentos de alegria ao lado do irmão;
mas, quando se viu sozinho em sua cama e pensou na infidelidade da esposa, ficou
angustiado. Incapaz de dormir, levantou-se.
Tão triste
estava que seu rosto denunciava seus sentimentos.
O irmão
notou:
“– Que está acontecendo
com ele? Estará com saudades de seu reino e de sua esposa?”
Na manhã
seguinte, Xariar deu de presente ao irmão o que a Índia produz de mais valioso
e de mais belo e fez o possível para diverti-lo. Mas Xazaman parecia ainda mais
triste.
Um dia Xariar
organizou uma caçada numa região distante do reino; a viagem até lá demorava cerca
de dois dias. Xazaman não quis acompanhar o irmão; deu como pretexto sua saúde,
que não estaria boa. O sultão aceitou a desculpa e partiu com toda a sua corte.
Sozinho no palácio, Xazaman se recolheu a seu quarto e pôs-se a olhar o jardim através
de uma janela. De repente, algo chamou sua atenção: uma porta secreta se abriu
e por ela saíram
vinte
mulheres; ao lado delas, estava a sultana.
Xazaman via
a cena sem ser visto. De repente, as mulheres tiraram o véu, e ele pôde ver
que, na verdade, eram dez homens com as mulheres! Então a sultana bateu palmas,
chamando:
– Massud!
Massud!
Àquele chamado,
um homem desceu do alto de uma árvore e foi até a sultana.
Xazaman, então,
percebeu que Xariar era tão infeliz quanto ele. Sem dúvida, aquela era a sorte
de todos os maridos: serem traídos. “ – Já que é assim, por que me atormentar
lembrando
o tempo todo
uma infelicidade que é tão comum?” – disse ele a si mesmo. E daquele momento em
diante esqueceu a tristeza.
Mandou que
lhe preparassem o jantar e comeu com apetite.
Nos dias que
se seguiram, estava alegre e bem-disposto.
Quando
Xariar retornou da caça, espantou-se ao ver como
o estado de
espírito do irmão havia mudado. E quis saber dele
o motivo.
Xazaman respondeu:
– Você é meu
sultão e meu senhor, mas, eu suplico, não exija
que eu
responda a essa pergunta! Xariar insistiu e, então, Xazaman contou tudo sobre a
infidelidade da rainha de Samarcanda, sua própria esposa.
Xariar
aprovou o modo como o irmão tinha reagido:
– Meu irmão,
que história mais terrível essa!
Você fez bem
em castigar os traidores; foi uma ação justa. Agora compreendo a sua tristeza.
Mas me conte o motivo de sua alegria.
Xazaman tentou
inutilmente fazer com que o irmão desistisse de querer uma resposta àquela
pergunta.
Xariar ficou
ainda mais curioso, e ele teve de contar tudo o que acontecera durante a
ausência do sultão. Terminou a história assim:
– Tendo
visto tantas infâmias, cheguei à conclusão de que todas as mulheres se
comportam assim. É tolice fazer com que a nossa serenidade dependa da fidelidade
delas. Por isso, o melhor é consolar-se!
Xariar
inicialmente se recusou a acreditar no o irmão lhe contara. Xazaman, então,
propôs que os dois fingissem ir a uma caçada e se ausentassem do palácio. Na
mesma noite da partida, retornariam aos aposentos de Xazaman. Assim se fez.
Partiram e, ao cair da noite, o sultão mandou que seu vizir ficasse no comando dos
homens e não permitisse que ninguém saísse do acampamento. Os irmãos partiram sozinhos
a cavalo até o palácio e, pela janela do quarto de Xazaman, viram a porta
secreta se abrir, os dez homens disfarçados aparecerem acompanhados das mulheres,
e a sultana chamar por Massud.
Enfurecido,
Xariar deu ordem ao grão-vizir de estrangular a esposa. Com suas próprias mãos,
cortou a cabeça de todas as mulheres que acompanhavam a sultana. E, daquele dia
em diante, decidiu que jamais voltaria a confiar nas mulheres. Ele se casaria com
elas por uma noite e as faria estrangular no dia seguinte.
Pouco tempo depois,
Xazaman regressou a seu reino.
Foi assim
que o revoltado Xariar pôs em prática seu plano. Casava-se com uma das moças do
reino, passava com ela uma noite, mas no dia seguinte mandava que fosse estrangulada.
A cidade ficou abalada com aquela desumanidade. Pais e mães choravam por suas
filhas. Todos temiam que elas se tornassem
vítimas do
sultão.
O grão-vizir
tinha duas filhas: a mais velha se chamava Xerazad e a mais nova, Dinarzad.
Xerazad tinha grande coragem e inteligência; lia muito e tinha uma memória
fabulosa. Era belíssima e muito virtuosa.
O grão-vizir
a amava muito. Um dia Xerazad lhe disse:
– Meu
querido pai, quero lhe pedir um favor.
Peço que não
me recuse o que desejo! Quero dar um basta nas crueldades do sultão contra as
famílias desta cidade.
– Sua
intenção é muito justa, filha. Mas como pretende conseguir isso?
– Casando-me
com o sultão.
O vizir
horrorizou-se com aquelas palavras. Mas nada do que disse à filha pôde fazer
com que Xerazad desistisse de seu plano. O pai, vencido pela insistência da
moça, finalmente consentiu: angustiado, foi até o sultão e lhe disse que
naquela noite lhe traria a
filha. O sultão ficou muito espantado e ameaçou:
– Mas saiba
que, de manhã, eu lhe darei ordens para estrangulá-la. E se você se recusar,
mandarei matá-lo!
Quando o pai
contou à filha que Xariar aceitara casar-se com ela, Xerazad ficou muito
contente, como se tivesse recebido a melhor notícia do mundo.
Agradeceu a
seu pai e o consolou, assegurando-lhe que ele não se arrependeria por tê-la
dado em casamento ao sultão. Depois, chamou a irmã e lhe disse em segredo:
– Querida
irmã, preciso de sua ajuda. Pedirei ao sultão que você durma no quarto nupcial.
Amanhã, uma hora antes de raiar o dia, acorde-me e diga:
“Minha irmã,
por favor, conte uma daquelas belas histórias que você conhece!”
De noite,
Xerazad foi levada ao quarto nupcial e, chorando, implorou que a irmã Dinarzad
pudesse passar a noite ali ao seu lado. O sultão concordou.
Quando
faltava uma hora para raiar o dia, a irmã fez exatamente como Xerazad havia
pedido; acordou-a uma hora antes do nascer do sol, dizendo:
– Minha
querida irmã, antes que nasça o dia, conte uma daquelas belas histórias que
você conhece!
Talvez seja
a última vez que terei o prazer de ouvi-las!
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