Em seguida
deu uma ordem ao tenente do bando.
— "Olá,
Capacete! Diga ao cozinheiro que prepare um pão-de-ló bem grande e bem bonito e
que ponha dentro..."
Não pôde
terminar. Um tique-taque muito seu conhecido fez-se ouvir perto.
— "O
crocodilo!" — berrou o chefe dos piratas, disparando na fuga a todo
galope, seguido pelo bando inteiro — e logo se sumiram no horizonte dentro duma
nuvem de pó. O crocodilo, tique-taque, os acompanhou sem pressa nenhuma,
filosofando que se daquela vez não o havia apanhado, de outra o apanharia.
— A senhora
falou em nuvem de poeira, vovó. Mas a floresta não estava coberta de neve? —
indagou Narizinho.
— Sim, minha
filha. Mas a neve logo que cai, acumula-se solta como farinha. Se dá o vento,
voa como poeira. Ora, os piratas fugiram ventando como tia Nastácia diz quando
a carreira é séria, e, portanto levantavam nuvens de neve em pó.
— E que
aconteceu depois? — quis saber Pedrinho.
— Pelo
tropel, os meninos lá embaixo perceberam que os piratas haviam fugido e
trataram de sair do subterrâneo. Foram subindo pelos ocos, e ao chegarem à
superfície viram que os Peles-Vermelhas estavam na pista dos piratas.
— Que
história é essa, vovó? Então os índios eram inimigos dos piratas?
— Eram
aliados de Peter Pan e inimigos do Capitão Gancho, contra o qual andavam em
guerra feroz.
O modo
desses índios fazerem guerra merece ser contado. Eles trepavam às árvores para
espiar ao longe, com a mão sobre os olhos em forma de viseira e aplicavam o
ouvido sobre a terra para ouvirem os rumores distantes.
Caminhavam
de rastos, como cobras, escondendo-se atrás de cada toco de pau ou moita.
Levavam arcos e flechas e também um tantã, que entre os índios é o tambor da
vitória.
Infelizmente
era muito raro ouvir-se o som do tantã, porque os Peles-Vermelhas sempre saíam
derrotados e fugiam como lebres.
Mas os
meninos, ao porem as cabecinhas fora dos ocos só viram o fim da correria. Em
minutos a poeira levantada pelos piratas em fuga e pelos índios perseguidores
desapareceu no horizonte.
— Que
expressão bonita! — exclamou Emília. — Desapareceu no horizonte!... Acho uma
beleza em tudo quanto desaparece no horizonte. Inda hei de escrever uma
história cheia de desaparecimentos no horizonte, com três pontinhos no fim...
E a boneca
ficou absorta, de olhos pendurados no horizonte, enquanto Dona Benta, a rir-se,
continuava a história.
— Passaram
os piratas — disse ela. — Depois passaram os índios. Só faltava passar o bando
de lobos famintos, que habitualmente acompanham os guerreiros para comer os
mortos.
— E vieram
os lobos nesse dia?
— Como não?
Logo depois surgiram os lobos no horizonte; mas farejando a gentinha de Peter
Pan fora do subterrâneo, desistiram de seguir os guerreiros e vieram como
flechas devorar os meninos.
Peter Pan,
entretanto, já havia descoberto o melhor meio de assustar lobo faminto.
Consiste em sair ao encontro deles de costas, com a cabeça entre as pernas. Os
lobos entreparam, desnorteados, não podendo compreender que espécie de animal é
aquele, e depois fogem com velocidade maior ainda que a do Capitão Gancho ao
ouvir o tique-taque do crocodilo.
Assim que os
lobos famintos chegaram a uma certa distância, os seis meninos, guiados por
Bicudo, correram-lhes ao encontro de costas, com a cabeça entre as pernas.
Foi uma
beleza! Os lobos entrepararam uns segundos e em seguida voltaram-se nos pés e
sumiram-se dentro da floresta.
Ora graças!
Os meninos perdidos podiam enfim brincar sossegadamente de pegador ou
chicote-queimado à luz do lindo luar que fazia. Mas não brincaram, porque
Cachimbo lhes chamou a atenção para qualquer coisa no céu.
—
"Olhem! Lá vem voando para o nosso lado uma espécie de pássaro branco bem
grande..."
Todos
ergueram o nariz e arregalaram os olhos. Não podiam compreender que pássaro
fosse aquele. Não parecia garça, nem outra qualquer ave conhecida. Súbito, uma
bola de fogo riscou o ar, vindo descer bem no meio deles. Era a fada Sininho.
—
"Peter Pan manda dizer" — declarou ela nervosamente na sua linguagem
do tlin, tlin, tlin — "que é preciso matar quanto antes essa ave que vem
vindo."
Cachimbo, o
melhor atirador do grupo, desceu imediatamente ao subterrâneo, de onde voltou
com um arco e uma flecha. Ajustou a flecha ao arco, fez pontaria, esticou a
corda e — zuct! — A flecha lá se foi assobiando e deu certinho no alvo. A ave
branca vacilou no voo, cambaleou, descrevendo um parafuso e veio cair junto ao
grupo. Todos correram para apanhá-la.
— "Não
é ave!" — exclamaram cheios de surpresa. — "É uma linda menina de
camisola branca. Talvez seja a tal mãezinha que Peter Pan vive prometendo
trazer-nos."
Era Wendy,
que se tinha adiantado dos demais durante o voo. A fada Sininho havia cometido
aquela traição porque estava a roer-se de ciúmes: Gostava de Peter Pan e não podia
suportar as atenções e requebrados do menino para com a sua nova conhecida. Daí
lhe veio a ideia de fazê-la flechar por um dos meninos.
Nisto chegou
Peter Pan, seguido de João Napoleão e Miguel. Assim que pôs o pé em terra, foi
logo indagando:
— "Onde
está Wendy?" — Ao saber que Wendy havia sido flechada, teve um grande
acesso de cólera e passou mão do arco para também flechar Cachimbo no coração.
E flechava mesmo, se não fosse Wendy despertar do desmaio ainda a tempo de
impedir tamanho crime.
Wendy não
havia sido ferida, porque a flecha batera justamente no botão-beijo que Peter
Pan lhe havia dado. Só sentiu o choque da flecha; e como já estivesse cansada e
tonta de tanto voar, bastou isso para fazê-la perder os sentidos e cair.
Vendo que
ela estava vivinha, os meninos a rodearam na maior alegria, embora sem saber o
que fazer. Levar Wendy para a morada subterrânea não lhes parecia bem.
Deixá-la por
ali ao relento, era pior. O único remédio seria construir-lhe uma casinha bem
ajeitada. Estavam a discutir esse ponto quando Wendy começou a cantar uma
cantiga em verso por ela mesma inventada, assim:
Uma casinha
quero ter,
Que menor
não haja no mundo;
Terreiro bem
limpo na frente,
Jardim de
mil flores no fundo.
—
"Pronto! Já sabemos o que ela quer!" — exclamaram os meninos em coro.
— "Vamos fazer a casinha de Wendy, com jardim de mil flores ao
fundo."
E foi uma
lufa-lufa. Bicudo correu a cortar paus na floresta; Cachimbo desceu ao
subterrâneo em procura duma velha grade muito ajeitada para a armação do teto;
Assobio foi em busca dum pedaço de tapete velho e dum rolo de encerado.
Num instante
ficou pronta a casinha. Peter Pan observou que haviam esquecido a chaminé. Onde
já se viu casa sem chaminé? Correu os olhos em torno, em procura, e deteve-os
no Miguel, que tinha na cabeça a cartola de seu pai.
—
"Ótimo!" — gritou Peter Pan tomando a cartola. — "Melhor chaminé
do que esta não é possível" — e arrumou-a em cima do teto.
E tudo mais
foi assim. O material de construção mais empregado era o
"faz-de-conta". Não tem fechadura na porta? Faz de conta que esta
fivela é fechadura. Não tem cadeira? Faz de conta que esta pedra é cadeira.
Wendy não
precisou entrar na casinha, porque a casinha havia sido construída em redor dela
— e foi a primeira vez no mundo que semelhante coisa aconteceu.
Pronta a
casa com a dona dentro, Peter Pan veio e bateu na porta — toque, toque, toque.
Wendy surgiu à janela e perguntou quem era.
— "São
os meninos perdidos que desejam saber se a menina está disposta a ser a
mãezinha deles. Nunca tiveram mãe e querem experimentar se é bom."
— "Com
muito gosto" — respondeu Wendy. — "Serei mãe de todos, contarei
histórias à noite, remendarei as roupas de dia, agradarei aos que chorarem e
ralharei com os que fizerem coisas inconvenientes — tudo igualzinho como mamãe
faz lá em casa. Mas só serei mãe se Peter Pan quiser ser o pai."
Todos
bateram palmas, numa grande alegria. Iam ter mãe afinal. Iam ter quem lhes
contasse histórias — que maravilha!
—
"História! História!" — exclamaram. — "Para começar, conte já
uma linda história" — e os meninos foram entrando para a casinha, em
atropelo. Era incrível que lá coubessem todos, mas couberam. Para isso foi
preciso que se arrumassem com a habilidade e o jeito com que as sardinhas se
arrumam dentro das latas.
Logo que
todos se acomodaram, Wendy começou assim:
— "Era
uma vez uma pobre menina chamada Cinderela" — e foi por aí além até que o
sono tomasse conta de toda a sua filharada.
Tudo dormiu.
Dormiu a floresta o seu sono agitado de morcegos, pios de coruja e uivos de
lobo. Dormiu o crocodilo, lá longe. Dormiram os piratas; e os índios, vendo o
inimigo a dormir, deixaram a perseguição para o dia seguinte e dormiram também.
Só não
dormiu Peter Pan. Passou toda, a noite fora, de espada na mão, montando guarda
à casinha da jovem mãe que havia arranjado para os meninos perdidos.
Dona Benta
parou nesse ponto, achando que o melhor era também irem dormir.
— Chega por
hoje. O resto fica para amanhã. Agora é cada um ir para sua cama sonhar com o
Capitão Gancho e o crocodilo
— Credo! —
exclamou tia Nastácia, erguendo-se. — Eu quero sonhar com Dona Wendy, que é tão
galantinha. Mas com esse canhoto malvado, Deus me livre!
Pedrinho deu
um suspiro. Estava lamentado não haver fugido para a Terra do Nunca tio dia em
que nasceu.
Narizinho
também suspirou. Quanto não daria para ser Wendy Darling?
Só Emília
não suspirou, nem disse nada. Saiu dali muito quieta e foi mexer na caixa de
ferramentas de Pedrinho.
Dona Benta
encontrou-a lá, lidando para entortar um prego.
— Que é que
está fazendo, Emília?
— Estou
vendo se faço uma munheca de gancho como a do Capitão.
— E para
que, bobinha?
— Para
assustar tia Nastácia. Quero ganchar aquele beição dela...
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