Era uma vez
um menino que morava numa casa muito grande. Ele tinha uma irmã que colecionava
bonecas chamada Desígnia. Essa coleção enfeitava uma prateleira enorme no
quarto que os dois dividiam. Certo dia o menino descobriu na prateleira algo
singular - um brinquedo simples, feito de tecido – boneca de pano. Não era
bonita como as belas companhias que tinha na prateleira, que traziam cabelos
bem cuidados, peles de porcelana e vestidos de luxo. Era uma bonequinha bastante
pequena, engraçadinha e resistente. Sem maiores atrativos. E por esse motivo
destoava completamente no ambiente.
Por um a
razão que me é desconhecida, inesperada e repentinamente esse menino se
apaixonou pela boneca. A irmã, que observava os acontecimentos da vida do
irmão, permitiu certo dia, que ele cuidasse da pequena de pano.
Nos
primeiros tempos se dedicava constantemente à boneca, que de maneira mágica,
percebia nascer emoções humanas em seu coração. Por vezes o menino pensou se
poderia estar equivocado ao ver alterações no semblante do brinquedo. Ao
encostar o ouvido no peito do objeto de seu divertimento, podia escutar, bem
baixinho, o pulsar de um coração.
Secretamente,
a boneca sempre soube da existência do cérebro, que possibilitava o entendimento
do mundo. Mas a conexão cérebro – coração nunca existiu.
Muitos
verões chegaram e se foram e um dia ela percebeu que só restaram invernos em
sua vida. O tempo cuidou de estragar o tecido e emaranhar os cabelos. O menino,
aos poucos, perdeu o encanto por aquele brinquedo, relegando a ele um canto
escuro na prateleira – para não sentir a culpa daqueles que jogam fora um
objeto que teve serventia num passado remoto.
Esse foi o
momento exato no qual o inverno se instalou no coração da pequena - definitivamente.
Nessa ocasião, principiou-se um rompimento de um remendo que não era – até
então - perceptível. E de dentro daquela ‘descostura’ saiu um coração, que
ficou preso apenas por um fio dourado. Coração de pano, muito delicado e
pequeno, ainda morno e pulsando lentamente.
A boneca,
que durante muitas estações conseguia ver cores e sentir os cheiros e texturas
do mundo, passou a perceber apenas gradações de negro e cinza. Deixou de ser
portadora das sensações humanas que teimavam animá-la.
O menino,
assustado, escondeu ainda mais o artefato, o banindo para uma caixa escura para
que ninguém soubesse daquele segredo. Desde esse dia nunca mais houveram
notícias dele, que simplesmente desapareceu.
Numa noite
inesperada, enquanto a boneca, através da janela, via as estrelas e não as
sentia, dois pontos luminosos apareceram na floreira. Após muitos anos sem
emoções, se apavorou e teve medo. O medo do perigo do sentir.
Nos dias subsequentes
as luzes misteriosas reapareceram e por um instante ela ouviu um sussurrar
musical que se confundia com o vento frio que viajava mundo afora. Eram acordes
semelhantes àqueles das caixinhas de música antigas.
Se
arrastando como pode, pulou da caixa e tentou ver o que acontecia, mas a
imobilidade imposta há tanto tempo não permitiu. Estatelada no chão, sentindo
solidão e tristeza, ela derramou suas lágrimas. Chorou a dor do mundo e o
coração voltou a bater gradualmente, respeitando o ritmo natural da vida.
Intimidada,
decidiu esperar. Enquanto aguardava percebeu que as cores, aos poucos,
voltaram. Reconhecia novamente o desejo, que há muito havia se perdido, de
pensar e elaborar emocionalmente.
Após alguns
meses apreciando aquela música, já habituada àquela rotina que havia
enfraquecido a dor da solidão, sua vida mudou. Imprevistamente e com apenas um
pulo, adentrou no quarto um crocodilo enorme, verde e marrom com mandíbulas
imensas. Tinha aproximadamente 1,80m da ponta do rabo até a cabeça.
A boneca
nunca havia sentido tanto medo na vida, até que percebeu, como por encanto, o
objeto trazido pelo réptil – a caixinha de música que havia preenchido de
esperança cada noite em seu coração.
Relembrou as
inúmeras vezes em que foi rechaçada por ser apenas uma boneca de pano e decidiu
que deveria ser gentil com aquele animal um tanto assustador. Percebeu, ao
olhar mais atentamente, que era um tanto desengonçado – principalmente nas
tentativas frustradas de acostumar suas patas ao carpete espesso do quarto.
Compreendendo o sobressalto nos olhos da boneca, começou a dançar
desordenadamente pelo cômodo. Ela começou a rir gostosamente. O crocodilo,
surpreso com as reações observadas no semblante da pequena de pano, dançou ainda
mais. Os dois sorriram. Nunca houve sorriso mais verdadeiro que aquele.
Quando a
música terminou contou toda sua história. Morava num pântano não muito longe
dali. Nadava trinta minutos e caminhava por mais trinta até chegar àquela casa.
E era muito difícil para um animal daquele tamanho caminhar!
Tinha uma
família enorme – crocodilo sempre mora junto. Mas o lodo que cobria o pântano e
os ajudavam a viver, tornou-se rançoso e escasso e ele fugia, uma vez por
semana, para o mundo que circundava sua habitação.
Segundo o
animal, havia uma senhora crocodila que tinha muitos anos – tantos que ninguém
sabia ao certo a data de nascimento dela. Era muito respeitada e sua palavra
era lei. Considerada a detentora da sabedoria, sempre alertava os descendentes
da impossibilidade de viver longe do pântano por mais de quatro horas. Essa
crença privava toda a família de um conhecimento externo, mas os mantinha
unidos. Explicou que crocodilo que fica fora do pântano tem o couro ressecado e
morre aos poucos. Portanto, ele precisava voltar para casa depressa, para não
desidratar.
A boneca
entendeu a lei máxima que regia a vida do pobre crocodilo e se satisfez com as
poucas horas semanais que eram apenas dos dois.
Aquelas
noites foram memoráveis. Eles dançaram, comeram, tomaram suco de melão, se
abraçaram e o crocodilo conseguia fazer a boneca rir cada vez mais e renascer.
Discutiam juntos os problemas dos crocodilos e das bonecas.
Ela contou a
ele sua história. Que não tinha família. Da perda do coração. Das tristezas.
Ele prometeu a ela que nunca mais sentiria solidão.
O crocodilo
era muito discreto e já havia percebido o fio dourado que segurava o coração da
pequena. Tinha medo que parasse de bater, pois ele crescia a cada dia.
Resolveu
pedir para fazer uma costura – cirurgia simples. Arrumaria carinhosamente o
coração e o fio dentro do peito e coseria o remendo. A boneca não sentiu medo
algum, confiava nele. No encontro seguinte, com uma linha quase invisível e
pontos delicados, o crocodilo consertou sua menina.
Sim, ela era
dele, pensava. E ao mesmo tempo, não era.
Os pontos
foram cicatrizando e a menina a cada dia ganhava cores e vida. Fascinado, o
crocodilo dispensava a ela todo o tempo que podia e muitas vezes chegou ao
pântano num horário limite, à beira da morte por desidratação.
Como podia
um artefato viver com um animal? No pântano ela não podia viver, pois a família
do jacaré a expulsaria de lá, certamente. E ele não poderia viver longe do lodo
que hidratava seu couro.
Mas os dois
não sabiam, dentro de sua limitação, que havia lodo fora do pântano e aceitação
dentro de um cômodo.
No começo,
pensava o crocodilo, era movido apenas pela curiosidade – queria inteirar-se da
história daquela bonequinha rota que estava fora do lugar. Era gasta. Comparada
às bonecas da estante do outro lado do quarto, era feia. Mas agora, tornara-se
indispensável à vida dele. Ela havia ensinado a ele que as patas servem para
fazer carinho e que os tecidos rotos podem se reconstituir através das palavras
que modificam a percepção da vida. E ele ensinou a ela o valor do otimismo e da
fé.
Quando
estavam juntos, as horas eram preenchidas pela harmonia. Misteriosamente, a
boneca começou a criar e ficou mais bela que todas as outras, pois tinha vida
quase humana.
Como podia
um humano viver com um animal?
Os verões
passaram e um dia o inverno tornou-se insuportável novamente. O crocodilo
decidiu que não podia ter duas vidas. Resolveu estabelecer sua vida no lodo do
pântano.
Deliberadamente,
esperava a boneca adormecer e retirava um ponto por vez daquele remendo.
Acreditava que se o coração fosse extraído ela poderia novamente voltar à caixa
e viver artefatamente insensível.
Mas o
crocodilo não sabia que pontos quase cicatrizados doem mais que os recentes. A
cada tesourada retirava não apenas parte da linha, mas matava a boneca e a
fazia sofrer imensamente. A pequena suportava as dores sem pestanejar. Não
mexia um músculo sequer. E fingia não perceber o que acontecia. Chorava as
dores copiosamente quando o crocodilo a abandonava.
Quando a dor
ficou insuportável, a boneca, num ato de coragem, arrancou o coração com as
próprias mãos e o plantou na floreira que enfeitava a janela do quarto. Nessa
época, o crocodilo havia espaçado suas visitas e resolveu que iria morrer no
pântano. Não sabia ao certo porque fazia aquilo, apesar de perceber que o
sentido da vida se esvaía. Não conseguia mudar aquele hábito. Condenou-se a uma
vida apenas. Uma vida de crocodilo eterno.
A boneca
voltou a ser um artefato usado, mas seu cérebro não parou de funcionar. Foi
condenada a pensar e trabalhar sem sentir emoção alguma. Seus olhos perderam
todo o viço. Dedicou seus dias à escrita das lembranças de sua vida dentro
daquele quarto.
Após plantar
seu coração, algo mágico aconteceu - ele se desfaz em raízes e uma esperança em
forma de folha verde brotou daquela terra ressequida. Era verão. E ela entendeu
– mas não pode sentir - que os verões também podiam ser cruéis.
Aquela
folhinha transformou-se numa planta que se espalhou por toda a casa, cobrindo
muros, as janelas e portas. A escuridão habitava aquela moradia e a boneca não
se importava mais. Como um autômato, escrevia e escrevia sem parar.
Não
suportando a separação, o crocodilo resolveu visitar a boneca e se deparou com
aquele emaranhado verde que obstruía as entradas da casa. Oculto pela vegetação
deu cordas na caixinha de música e a melodia ecoou pela barreira verde, mas não
obteve penetração alguma.
Naquela
ocasião o réptil chorou todas as suas lágrimas. A boneca, ao longe, podia ouvir
- mas não sentia. O cérebro trabalhava compulsivamente e só restaram histórias
em páginas amarelecidas pelo tempo.
O crocodilo
todas as noites visitava aquele local para derramar suas lágrimas de
arrependimento, sem ao menos saber que o coração de sua amada, desfeito em
raízes, nunca poderia ser recomposto.
Dizem que na
primeira primavera brotaram flores vermelhas e douradas. Resultado dos
sentimentos bons que a boneca havia plantado esperançosamente, durante anos, em
seu coração. Mas ao simples toque essas flores se desfaziam.
Dizem também
que o crocodilo tentou, em vão, colher essas flores que proporcionavam a ele
átimos de segundo de sentimentos de amor, antes de sumirem.
Essa
história chegou até nós por concessão da irmã do menino desaparecido. Desígnia,
num dia de outono, autorizou a queda de algumas folhas. Um forte vento soprou
dentro daquele mausoléu desabitado e por um pequenino vão deixado pelas folhas
caídas, uma das páginas escritas pela boneca foi levada diretamente às patas do
crocodilo, que semanalmente visitava aquele santuário.
O que havia
naquela página? A história dos dois.
Fernanda
Macahiba.
Fonte: http://contosencantar.blogspot.com.br/2012/01/boneca-e-o-crocodilo.html
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