Tio Barnabé
era um negro de mais de oitenta anos que morava no rancho coberto de sapé lá
junto da ponte.
Pedrinho não
disse nada a ninguém e foi vê-lo. Encontrou-o sentado, com o pé direito num
toco de pau, à porta de sua casinha, aquentando sol.
—Tio Barnabé
eu vivo querendo saber duma coisa e ninguém me conta direito. Sobre o saci.
Será mesmo que existe saci?
O negro deu
uma risada gostosa e, depois de encher de fumo picado o velho pito, começou a
falar:
— Pois, Seu
Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que "exéste". Gente da cidade
não acredita — mas "exéste". A primeira vez que vi saci eu tinha
assim a sua idade. Isso foi no tempo da escravidão, na Fazenda do Passo Fundo,
que era do defunto Major Teotônio, pai desse Coronel Teodorico, compadre de sua
avó, Dona Benta. Foi lá que vi o primeiro saci. Depois disso, quantos e
quantos!...
— Conte,
então, direitinho, o que é o saci. Bem tia Nastácia me disse que o senhor sabia
— que o senhor sabe
tudo...
— Como não
hei de saber tudo, menino, se já tenho mais de oitenta anos? Quem muito
"véve", muito sabe...
— Então
conte. Que é, afinal de contas, o tal saci?
E o negro
contou tudo direitinho.
— O saci —
começou ele — é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando
reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca
um pito aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça,
como a força de Sanção estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a
carapuça de um saci fica por toda vida senhor de um pequeno escravo.
— Mas que
reinações ele faz? — indagou o menino.
— Quantas
pode — respondeu o negro. — Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde
as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras
cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora
os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para
que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é
sempre arte do saci. Não contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela
as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não
faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça.
— E a gente
consegue ver o saci?
— Como não?
Eu, por exemplo, já vi muitos. Ainda no mês passado andou por aqui um saci
mexendo comigo — por sinal que lhe dei uma lição de mestre...
— Como foi?
Conte...
Tio Barnabé
contou.
— Tinha
anoitecido e eu estava sozinho em casa, rezando as minhas rezas. Rezei, e
depois me deu vontade de comer pipoca. Fui ali no fumeiro e escolhi uma espiga
de milho bem seca. Debulhei o milho numa caçarola, pus a caçarola no fogo e vim
para este canto picar fumo pro pito.
Nisto ouvi
no terreiro um barulhinho que não me engana.
"Vai
ver que é saci!" — pensei comigo. — E era mesmo. Dali a pouco um saci
preto que nem carvão, de carapuça vermelha e pitinho na boca, apareceu na
janela. Eu imediatamente me encolhi no meu canto e fingi que estava dormindo.
Ele espiou de um lado e de outro e por fim pulou para dentro. Veio vindo,
chegou pertinho de mim, escutou os meus roncos e convenceu-se de que eu estava
mesmo dormindo. Então começou a reinar na casa. Remexeu tudo, que nem mulher velha,
sempre farejando o ar com o seu narizinho muito aceso. Nisto o milho começou a
chiar na caçarola e ele dirigiu-se para o fogão. Ficou de cócoras no cabo da
caçarola, fazendo micagens. Estava "rezando" o milho, como se diz. E adeus,
pipoca! Cada grão que o saci reza não rebenta mais vira piruá.
Dali saiu
pra bulir numa ninhada de ovos que a minha carijó calçuda estava chocando num
balaio velho, naquele canto. A pobre galinha quase que morreu de susto. Fez
cró, cró, cró... E voou do ninho feito uma louca, mais arrepiada que um
ouriço-cacheiro. Resultado: o saci rezou os ovos e todos goraram.
Em seguida
pôs-se a procurar o meu pito de barro
Achou o pito
naquela mesa, pôs uma brasinha dentro e paque, paque, paque... Tirou justamente
sete fumaçadas. O saci gosta muito do número sete.
Eu disse cá
comigo: “Deixe estar, coisa-ruinzinho, que eu ainda apronto uma boa para você”.
Você há de voltar outro dia e eu te curo."
E assim
aconteceu. Depois de muito virar e mexer, o sacizinho foi-se embora e eu fiquei
armando o meu plano para assim que ele voltasse.
— E voltou?
— inquiriu Pedrinho.
— Como não?
Na sexta-feira seguinte apareceu aqui outra vez às mesmas horas. Espiou da
janela, ouviu os meus roncos fingidos, pulou para dentro. Remexeu em tudo, como
da primeira vez, e depois foi atrás do pito que eu tinha guardado no mesmo
lugar. Pôs o pito na boca e foi ao fogão buscar uma brasinha, que trouxe
dançando nas mãos.
— É verdade
que ele tem as mãos furadas?
— É, sim.
Tem as mãos furadinhas bem no centro da palma; quando carrega brasa, vem
brincando com ela, fazendo ela passar de uma para a outra mão pelo furo.
Trouxe a
brasa, pôs a brasa no pito e sentou-se de pernas cruzadas para fumar com todo o
seu sossego.
— Como? —
exclamou Pedrinho arregalando os olhos. —
Como cruzou
as pernas, se saci tem uma perna só?
— Ah,
menino, mecê não imagina como saci é arteiro!...
Tem uma
perna só, sim, mas quando quer cruza as pernas como se tivesse duas! São coisas
que só ele entende e ninguém pode explicar. Cruzou as pernas e começou a tirar baforadas,
uma atrás da outra, muito satisfeito da vida. Mas de repente, puff! Aquele
estouro e aquela fumaceira! ... O saci deu tamanho pinote que foi parar lá
longe, e saiu ventando pela janela a fora.
Pedrinho fez
cara de quem não entende.
— Mas que
puff foi esse? — perguntou. — Não estou entendendo...
— Ê que eu
tinha socado pólvora no fundo do pito — exclamou tio Barnabé dando uma risada
gostosa. A pólvora explodiu justamente quando ele estava tirando a fumaçada número
sete, e o saci, com a cara toda sapecada, raspou-se para nunca mais voltar.
— Que pena —
exclamou Pedrinho. — Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse saci...
— Mas não há
só um saci no mundo, menino. Esse lá se foi e nunca mais aparece por estas
bandas, mas quantos outros não andam por aí? Ainda na semana passada apareceu
um no pasto de Seu Quincas Teixeira e chupou o sangue daquela égua baia que tem
uma estrela na testa.
— Como é que
ele chupa o sangue dos animais?
— Muito bem.
Faz um estribo na crina, isto é, dá uma laçada na crina do animal de modo que
possa enfiar o pé e manter-se em posição de ferrar os dentes numa das veias do pescoço
e chupar o sangue, como fazem os morcegos. O pobre animal assusta-se e sai
pelos campos na disparada, correndo até não poder mais. O único meio de evitar
isso é botar bentinho no pescoço dos animais.
— Bentinho é
bom?
— É um
porrete. Dando com cruz ou bentinho pela frente, saci fede enxofre e foge com
botas-de-sete-léguas.
Por hoje já
descobrimos bastante sobre o Saci, mas tem muitas histórias ainda, Pedrinho não
vai desistir, aguardem...
Autor Monteiro Lobato agora em Domínio Público.
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2 comentários:
Fez me recordar o Sítio do pica-pau amarelo.
Obrigado pela visita!!!
Gosto do conto!
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